23 de maio de 2010

Brincar de ler

Para o presente texto, precisarei, ou melhor, implorarei a tua ajuda, nobre leitor. Isso porque este aqui nada mais é que uma brincadeira, e eu garanto – como quem faz propaganda de um produto – que não permitirei que não te divirtas. As regras serão explicadas assim que a necessidade surgir, mas não te preocupes pois qualquer um que é minimamente alfabetizado pode brincar.

Primeiramente façamos leves reflexões acerca da leitura. Quer dizer, não é pelo menos insano tu estares a olhar para uma tela branca cheia de manchas pretas? Digo, tu atribuis sentido a borrões pretos. Teu cérebro simplesmente aceita que um alfabeto – seja lá o que for isso – exista. E mais acima na hierarquia do sentido morfológico, és estranho por estar acreditar que essas letras juntas de forma não casual possam formar signos, com imagem própria.

No plano das ideias, é óbvio que tenhas todas essas palavrinhas e palavrões desenhados em mente assim que produz ou recebe um novo conjunto de borrões. Pois para mim não passam disso. Borrões, isso mesmo! Borrões estúpidos que de nada servem. Pensa, esses borrões só servem para adquirirmos conhecimento. E isso na mão de poucos, é uma verdadeira arma.

Com base nesse ato chamado de leitura, podes revolucionar tua sociedade inteira. Podes formular teses religiosas, podes chocar com uma notícia ou com uma narração absolutamente grotesca. Podes matar, mandar matar. Podes morrer, mandar morrer. Podes brincar, até mesmo, de ler como este texto idiota.

Tá certo, aceitamos o fato de que vamos ler e atribuir sentido a essas coisinhas pretas. Isso só porque nós queremos muitíssimo brincar, não queremos?

O primeiro passo é pensar: tu estás a ler em voz baixa? Ora, isso te faz ainda mais estúpido porque estás a atribuir sentido a uma coisa de que sentes vergonha de falar em voz alta. Como podes ler “O Relógio” de Vinícius em voz baixa? Como ler o tique-taque com todo seu ritmo em voz baixa? Pois este é o primeiro passo para brincarmos: leia tique-taque em voz baixa. Aumenta o tom conforme vai terminando a última sílaba, até gritar. Vamos, começa:

tique-taque, tique-taque, tique-taque, tique-taque, tique-taque, tique-taque, tique-taque.

O que achares da experiência ? Alguém veio perguntar se está tudo bem com você ou se foi o relógio que precisa de um concerto? Não há problema. Essa brincadeira fica ainda mais divertida em grupo, chama qualquer um que te ache peculiar para participar.

Agora façamos o mesmo, mas dessa vez tu não pronunciarás uma só palavra que possa ser ouvida por alguém que esteja a teu lado, que seja. Gritarás em pensamento.

tique-taque, tique-taque, tique-taque, tique-taque, tique-taque, tique-taque, tique-taque.

Difícil, não? Imagino.

Agora imagina alguém lendo o mesmo trecho. Multiplica esse indivíduo por um número exorbitante. Todos num mesmo ritmo, começando juntamente, como num coro belo e sincronizado. Imagina que alguém tenha saído do ritmo, e só se ouve uma voz sobressaindo do coro. E se todos saíssem do tal ritmo?, cada um por si. Imagina isso, então.

É um coro de relógios numa oficina que precisam de concerto. Um concerto que só é tido como concerto no momento em que o silêncio se instaurar. Então imagina muitos relógios – dessa vez relógios mesmo – em um ritmo altamente díspar e não-sincronizado. Um por um pára, até que um só grite por uma última vez. O silêncio se faz novamente.

Para terminar, teremos um exercício que eu tenho certeza que fará muitas pessoas pararem de ler o texto ou dizerem: mas que cara chato! Mesmo assim, farás comigo, correto?

Ok, levante a mão quem nunca atribuiu sentido a algo totalmente obsceno ou obscuro em nossa mente insana e nojenta. Sim nojenta. Pois lê isto aqui:

ONTEM EU LEVANTEI MEU BRAÇOS E SENTI O CHEIRO DO MEU SUVACO.

ERA MUITO GOSTOSO, ME DEU TESÃO. ENTÃO EU RESOLVI ME MASTURBAR

E PENSAR NAQUELE/NAQUELA PROFESSOR(A) QUE TANTO ESCITA OS ALUNOS.

E olha que nem foi tão forte assim. E então? Conseguiste fazê-lo? Aposto que sim, afinal de contas não queres que este texto tão dinâmico perca esse aspecto tão divertido – porque as brincadeiras são feitas disso: diversão!

Agora mudaremos o foco: escreve tu uma frase muito feia que eu lerei em voz altíssima! Far-lo-ei com vontade, assim como fizeres.

Leandro Augusto

7 de maio de 2010

Esquisito


Então ele acordou. E pensou naquele sonho esquisito. Mas esquisito é um termo muito banal. Quer dizer, em inglês, o seu cognato é um termo positivo. E no português, minha língua materna, vemos tal signo linguístico como algo minimamente negativo. Os outros falantes de português que contestem-me!

Mas a necessidade dessa explicação comparativa entre ambas as línguas se faz presente só porque ele não conseguia julgar o que foi sentido no sonho. Ora, não se pode julgar como negativo o que não foi sentido como tal. E a progressão era o que mais o deixava intrigado. Sim, porque tudo começou tão pequeno, pequenos rastros de uma presença que aquele quarto mantinha. E agora... agora era como se ele já tivesse aceitado e até mesmo convidado sua nova amiga para habitar sua consciência e inconsciência.

*

Tudo começou num dia chuvoso. Claro, tudo de ruim acontece nos dias chuvosos. E acredito ser pertinente para um texto que pretende amedrontar seus leitores. Ele acabara de sair do trabalho – era assistente em um posto de gasolina.

Estava exausto, e triste por uma breve, porém intensa, crise que teve. A questão que lhe bateu bateu porque uma cliente parou com seu belo carro do ano no lugar aonde estava a esperar o primeiro cliente do dia. E assim o vendo com uniforme mais simples, a perua chamou algum dos frentistas para a ajudar. E esperou mais tempo, mas esperou.

Ou seja, ele não tinha nem mesmo capacidade de ser frentista! Desistira da escola, desistira da família pois sua mãe só enchia o saco com perguntas impertinentes. A única coisa de lhe sobrara era assistente de posto de gasolina. Trabalhava o mesmo que qualquer frentista, mas usava um uniforme mais simples. Se eu apenas pudesse ter um uniforme de frentista, pensava.

Voltou para casa e deixou que a chuva o molhasse por completo. Esperava algum tipo de purificação, mas tudo o que conseguia sentir era uma eterna ânsia de vômito (e sabia que não vinha para purificar nada). Ele se sentia cheio de emoções, saindo-lhe a boca.

Chegou em casa, mas não adentrou o portão. Deitou-se na calçada e sentiu mais um pouco a chuva bater em seu corpo. Ela era uma chuva fria e tinha gosto. Tinha gosto de dor. E não era transparente, era negra, mais negra que seus cabelos longos. Por esse motivo ele não era purificado, era contaminado por aquele esgoto vindo dos céus. Aquele esgoto, mais um esgoto mandado pelo seu velho amigo Deus.

Hoje eu morri, pensou. Hoje eu sou seco. Hoje eu sou vazio de qualquer tipo de fé. Só creio na chuva negra sob a qual se encontra meu corpo. Quando deu por si, estava gritando algo como “preencha-me, negra chuva!”.

Quando o sol já estava por nascer, entrou e foi dormir. Dormiu bem, como não fazia há tempos.

*

No dia seguinte trabalhou se sentindo um assistente de merda. Mas usou seu conhecimento para fazer um trabalho burocrático, apenas. Nada o fazia pensar em outra coisa que não fosse a chuva negra e como ela o preencheu.

Olhou para o céu, mas havia uma nuvem sequer.

- Marco, pode ir embora.

E foi. E olhou para o céu, e nada viu. Só viu um sol feliz e colorido. Conforme ia chegando em casa, planejava o que fazer se a chuva voltasse aquela noite. O que diria a ela. Como a pediria que não fosse embora.

Naquela noite a chuva voltou. Mas estava colorida. Tinha cores tão alegres e fortes que ele se trancou em seu quarto sem janela. Botou um roque para tocar e só ouviu. Ouviu tanto que no dia seguinte acordou com o toca-discos riscando um som mecânico, pois o disco havia de estar gasto.

*

E era uma dor tão grande de ter sido esquecido que ele não conseguia forças para se levantar da cama. E tentava, e não conseguia. Ele só ouvia aquele barulho irritante, mas achava ritmado. Achava que era uma ótima música.

Levantou-se e dançou o dia todo. Tanto que se esqueceu-se que um dia quis ser frentista. Tanto que esqueceu-se que tinha que ter saído há algumas horas. Dançou e nada comeu. Também não fumou. Até que o disco já não tinha nada mais para tocar. Então ele parou e se jogou no chão, cansado.

Até que um barulho conhecido tomara conta do quarto. Na verdade tomava conta da casa toda. Não, tomava conta da cidade inteira! E era um barulho tão familiar que ele tinha vontade de dar gargalhadas altíssimas. E gargalhou muito. Até que ficasse sem voz. Mas o barulho não iria embora.

Saiu para ver o que tomava conta da cidade. E era uma voz que gritava seu nome, conforme gotas de água escura caíam no chão. Era a chuva negra! Ela voltara! Ele dançou e gargalhou, porque conseguiu forças extra-corpóreas para assim o fazer. E o fez, até que o próximo dia raiasse com o sol.

Deitou-se quando a chuva se foi. Dormir por duas horas. Acordou na hora em que costumava para trabalhar. E o deu uma vontade incontrolável de trabalhar. E trabalhou, e foi elogiado por seu chefe. E recebeu gorjetas que nenhum frentista tinha jamais recebido.

*

Acordou raivoso. Sentia uma esperança inútil. Há duas semanas a chuva não vinha. Era domingo, e seu dia de folga chegara. Folga, essa, que serviria de palco para mágoa e tristeza. Ele queria ser preenchido novamente. Ele queria muito.

Deitou-se depois de tomar café velho. Café sem açúcar, para enfatizar a amargura em seu coração. Deitou-se e sentiu o gosto incomodando na boca. Mas ele não afirmaria ser o gosto do café. Era um gosto mais amargo, e era um amargo jamais provado antes. Era um amargo com gosto de náusea. Era náusea de tudo. Náusea de ser assistente de posto de gasolina. Náusea de não ganhar mais gorjetas estupendas. Náusea de ser nada na vida. Náusea de solteiro acabado. Náusea de roque. Mais, acima de tudo, náusea de saudade. Era náusea de vômito algum. Vômito de vazio, de nada fazendo digestão. Vômito do que não vinha há duas longas semanas de depressão.

Vomitou.

Levantou-se. Dançou. Colocou um roque no toca-discos e dançou balé. Dançou e se cansou de dançar.

Saiu de casa e esperou a chuva negra chegar. Esperou até que a noite chegasse. Ela não veio.

*

No dia seguinte, acordou pronto para mais um dia de trabalho. Ele tinha muita fome, mas não havia o que comer. Abriu a geladeira e constatou que realmente nada havia para comer.

Foi ao banheiro e forçou urina. Não saiu. Forçou mais um pouco e não saiu. Ele chorou e implorou a seu membro que liberasse uma gota sequer. Nada saiu. Olhou ao redor, e sentiu fome. Viu o papel higiênico; parecia tão suculento. Comeu.

Botou o primeiro pé para portão afora. E notou o chão revestido de líquido gosmento e negro. Ela veio ontem pela noite, lamentou. E aquela vontade de mijar lhe veio. Antes mesmo de entrar de novo, mijou-se inteiro. Mijou negro, manchando, assim seu uniforme branco e amarelo.

*

Quando voltou para casa, bem de noite, ouviu seu nome vindo do quarto. Entrou correndo. O quarto estava escuro, com uma incrível nuvem negra por escapar o cômodo. Ela voltou! A chuva negra voltou! E gritou “preencha-me de novo”, e implorou, e chorou, até que o convite fosse aceito.

Naquela noite ele não dormiu, só sentia a água adentrar os orifícios de seu corpo: boca, olhos, narinas, orelhas, pênis e ânus. Quando deu por si, já era claro e a nuvem havia ido. Mas aparentemente deixara algo em seu quarto. Uma presença tão confortável e também assustadora. Sentia seu dormitório mais claro em uma aresta. Era uma presença feminina que o lembrava a mãe. Deixou o branco à vontade, servindo-lhe todo o papel higiênico que lhe restara.

Estou com fome, pensou. Preciso comprar mais papel.

*

Então ele acordou. E pensou naquele sonho esquisito. Mas esquisito é um termo muito banal. Quer dizer, em inglês, o seu cognato é um termo positivo. E no português, minha língua materna, vemos tal signo linguístico como algo minimamente negativo. Os outros falantes de português que contestem-me!

Mas a necessidade dessa explicação comparativa entre ambas as línguas se faz presente só porque ele não conseguia julgar o que foi sentido no sonho. Ora, não se pode julgar como negativo o que não foi sentido como tal. E a progressão era o que mais o deixava intrigado. Sim, porque tudo começou tão pequeno, pequenos rastros de uma presença que aquele quarto mantinha. E agora... agora era como se ele já tivesse aceitado e até mesmo convidado sua nova amiga para habitar sua consciência e inconsciência.

No sonho, ele sentiu a água negra adentrar seus orifícios. Foi depois de um tempo que o líquido começou a entrar mais fortemente. E entrava numa velocidade que doía por dentro. Era como se uma correnteza estivesse sendo instalando-se dentro de seu corpo. Não soube delimitar o espaço e o lugar em que seu corpo estava, mas conseguia se ver, como se fosse um terceiro. E viu-se sofrendo e gritando “preencha-me”. Chorou de fora.

O céu começou a brilhar mais forte, mas a água enegrecia a paisagem. Era como se fosse uma disputa, mas a decisão de que lado tomar já tinha sido tomada. Quando tudo parou, e enegreceu por completo, ele estava sozinho. Sozinho num parque de diversões. Um parque de diversões abandonado. Mas os brinquedos funcionavam e brilhavam a mesmas cores: vermelho e cinza.

Da roda gigante, que ocupava a maior parte do espaço em que estava inserido, alguém o chamou. Era uma garota de branco. Sua pele era branca e pálida demais para que fosse possível um contato visual efetivo. Conseguiu ver que sua expressão era tão macia, que a vontade que tinha era de se juntar a ela. Juntou-se. E depois disso não soltou mais.

*

Seus companheiros de trabalho estão acertando as contas. Hoje é dia de pagamento?, pergunta. Não, eles estão a sair do posto de gasolina. Reclamam de estarem muito cansados. Por um motivo qualquer, ele se sente totalmente disposto. Trabalha duro.

No fim do dia, seu chefe o chama e o elogia. Você está sendo promovido para frentista. Aquela música o soa até o caminho para casa. Ao mesmo tempo que está feliz, não demonstra por uma segurança especial que se instaurou dentro dele.

*

Ele se deita e pensa na chuva negra. Mas não é ela quem encontra. Debaixo de sua cama algo sai. E ele acredita ser uma minhoca grande, e ela vai saindo aos pouquinhos, mostrando aos pouquinhos que seu corpo não é tão anelado assim. Mostra também um aumento do diâmetro no mesmo corpo. Sai bem devagarzinho e ele só pensa que poderia ser a chuva negra voltando. Alegra-se. Porque, de alguma forma, sente aquela presença amiga e familiar a se aproximar.

Depois de um tempo considerado por ele grande que um orifício acompanha essa minhoca. Ela é marrom, cor de minhoca mesmo. Um orifício com pregas que apertam a passagem de qualquer coisa. A minhoca a se mexer. O orifício se mostra um ânus, e logo pode perceber se tratar não de uma minhoca, mas de uma calda pequena e espessa conforme vai se juntando ao corpo.

Eis que surge uma perna, magra e musculosa. Marrom. Joelhos marrons e bem destacados, como se estivessem em relevo em relação ao resto do corpo. Ele ouve o som de um piano ao fundo. O piano toca bem de leve, como se fosse uma progressão para um ápice musical. O pé é grande, e mais se assemelha a pé de ave pois tem uma dobra ao chegar nas unhas grandes e pontudas. Garras, não unhas. A perna se movimenta conforme a música vai progredindo.

A música do piano começa a aumentar seu tom, não intensidade, ainda. E a cada tom que se alcança, uma outra perna de mostra. A perna se estica, o que mostrava que não é uma ave. São pernas de gente. Gente de verdade. Ele começa a ter medo.

O ânus se abre conforme a música aumenta o tom. E se fecha rapidamente quando a música repentinamente para de tocar.

Rápido. Intenso. Fortemente. O piano começa a tocar uma melodia tocante. O corpo se movimenta mais rapidamente, conforme o ritmo. Costas finas e musculosas começam a aparecer. Ele está chorando. A calda pequena se meche como a de um cachorro feliz ao ver o dono. Ele ri disso. E, como que por aceitação do riso dele, o corpo se mostra por inteiro, de costas, deitado no chão.

Chifres de búfalo, cabeça de bode, narinas de dragão. Aquela cabeça marrom estava de boca fechada e olhos também fechados. Ele não consegue se mover. Não sente mais medo. Os braços da criatura são finos e musculosos. As mãos são de menina pequena. Unhas pequenas e sujas de algo vermelho. Em meio a tantas cores e se pergunta aonde está a água negra. Não sente mais medo.

A criatura dorme, mas a calda balança. Ele se deita confortavelmente e espera o próximo acontecimento. Ele não chega tão cedo. Não sente medo algum, mas quer que a chuva volte. Uma nuvem pequena se mostra no canto do teto de seu quarto. Pequena e negra. Adormece junto com a criatura. O piano toca suave, como se o ninasse.

João Hernesto