22 de fevereiro de 2011

O Labirinto do Minotauro

A primeira coisa que ela fez foi se aquecer e estender seus músculos e tendões: sua primeira professora de balé clássico a ensinou a fazer isso. Ela dizia que o balé doía. Mas a prática tornava o ato muito mais prazeroso. Olhou para suas sapatilhas e reparou que estavam gastas e deformadas. O que ela não coseguia ver é que, na realidade, o que estavam gastos e deformados eram seus pés calejados. A sapatilha não passava de um modo de escoder a parte do corpo de uma bailarina cuja vergonha mais se alastrava.

Depois de se preparar fisiologicamente, pensou em preparar-se psicologicamente. Eu não preciso fazer isso. Eu só faço para provar a mim mesma que meus pés dão conta de qualquer labirinto, por mais que ela encontrasse centenas de minotauros horrendos e as pedras fossem duras o bastante para ferir seus pés já calejados. Lembrou-se de novo de sua professora. Tenho a cabeça raciocinante, não preciso me preocupar. É só montar o labirinto em minha cabeça conforme entro em seus escombros. Daí é só imaginá-lo de cima e armar minha estratégia.

Estou pronta.

E foi. E entrou. E admirou a paisagem por um instante. E quis não voltar. E pensou, isso aqui é bem mais simples do que eu imaginava. Em apenas um dia eu consigo cumprir a tarefa. Em apenas algumas horas eu já saberei aonde estou. Além do mais, tenho comida na mochila. Água na mochila. Energia no corpo. Um depósito inteiro de preparo na cabeça. E foi. E entrou.

No princípio era muito claro. Ela conseguia pensar nas fórmulas matemáticas e objetivas para sair daquele labirinto. Lembrou-se de uma história de quem ela nem recordava. A história dizia que o real problema dos labirintos não é o labirinto em sí; é a pessoa que está dentro dele. O labirinto é perfeito, desenvolvido de forma impecável. Desenvolvido de forma que as pessoas não pudessem se peder. O que as faz se perderem é elas mesmas. Conforme o tempo vai passando, conforme as paredes vão se estreitando, conforme a comida vai acabando, conforme os dedos não lhes suporta. Com tudo isso, uma engrenagem matemática começa a pifar. E o que é um labirinto senão a vida e suas patologias freudianas?

É tudo psicológico. Não há o que temer.

E foi. E entrou mais um pouco.

Ai, que fome. Melhor deixar para mais tarde esse lanche. Pensou que, no meio do caminho, talvez pudesse encontrar frutas e flores comestíveis. Sua avó a tinha ensinado a ver se uma flor é venenosa. Talvez haja, ainda, um lago com peixes gordos. Posso pegá-los e fazer um grande banquete. Mas não houve nada disso.

E o tempo foi passando e a luz se apagou. E não houve nada de nada. Só paredes cheias de verde e verde. Nada de flores comestíveis. Nada lagos azuis. Nada de peixes prateados. Nada de nada. E a comida se acabando. E ela pensando que haveria, em algum lugar aquele paraíso particular por ela idealizado. E a estrada tinha muitas pedras. E tinha tantas pedras que seus pés de bailarina se cansaram. Ela olhou pra lua, do pouquinho que ainda podia enxergar. Olhou para as paredes que davam seis dela. Olhou para o horizonte e viu nenhum horizonte. Vou dormir.

E dormiu.

Acordou com um focinho gelado a molhando. Sentiu frio. Foi acordando aos pouquinhos. Até que se viu num lindo jardim, cheio de flores comestíveis. Cheio de lagos e peixes dourados. Cheio de nenhuma parede. Cheio de mochilas e elas cheias de sanduíches. Esse focinho era de seu cachorrinho, que já havia morrido há algum tempo. Estou sonhando, pensou na mesma hora. Preciso acordar e achar meu caminho de volta pra casa. E se beliscou. E não acordou. Fui levada de onde estava por alguém e nunca mais saberei qual a lógica deste labirinto.

Havia uma festa. Mas a festa não era pra ela. A festa era para alguma vitória que parecia ser a de uma guerra muito antiga. Havia pessoas fantasiadas de época medieval. Não havia permissão para comer ou beber do que lá havia. Não havia ninguém que não a chamasse de algo que ela pudesse entender. Mas ela sabia que não era coisa boa. Não havia ninguém que falasse sua língua. Ela se perdera e nem sabia se estava no labirinto ainda.

Resolveu partir, faminta. Andou por um tempo e não viu nada que não fosse campos e mais campos. Viu um pântano e no pântano ela viu um crocodilo sorridente. Não deu conversa e foi embora, certa de que logo acharia o labirinto de novo. Viu um escritor perambulando pelos cantos para ter uma ideia. Viu uma tribo de índios comendo um ser humano. Viu uma alcateia comendo índios. Viu índios comendo lobos. Viu lobos comendo labirintos. Viu labirintos comendo faunos. Viu faunos sendo devorados por minotauros. Pensou que os faunos, no mundo dos labirintos, estavam na base da cadeia alimentar. E rui disso.

Espere aí! Minotauro?!

Saiu correndo, sem pensar para onde estava indo. Sem nem pensar qual o formato daquele labirinto. Sem nem pensar na lógica, na matemática, na objetividade. Correu por entre aquelas paredes estreitas e engolidoras.

Ela sentou-se e chorou. E pediu a um deus que ela nem sequer conhecia por proteção. Ela chorou e chorou. E nada mais fez. As paredes eram todas iguais, ela não conseguiria achar a saída. Tentou bolar um plano, mas não conseguia bolar nada; ela só chorava. Ela lembrava de sua cama, de seu cachorro falecido, de sua mãe trazendo remédio quando estava doente. Ela se lembrou de seu primeiro namorado. Ela se lembrou de seu primeiro dia de aula. Ela se lembrou do balé. Ela se lembrou do dia em que tirou a sapatilha e seus pés sangravam. Ela se lembrou de cada calo que fez durante sua carreira de bailarina enquanto os tocava. Ela se lembrou de sua primeira professora. Ela se lembrou de seus ensinamentos e de sua prática. Ela se lembrou de cada lágrima que chorou e que nunca mais derramou pela mesma causa.

Levantou-se e buscou a saída. E ela não chorou mais.

João Hernesto

21 de fevereiro de 2011

Lesão por Movimento Repetitivo

Sinto minhas mãos tremerem e essa tremedeira vem de dentro. É como se fosse alguma coisa de pressão, do coração, da cabeça. É como se eu quisesse sair de onde estou e desistir de tudo o que eu já conquistei. Começar tudo de novo. É como se eu me encontrasse numa repetição insuportável. É como num labirinto que eu já não quero mais conseguir achar a saída. É como se eu já não tivesse mais satisfação nas coisas que antes eu tinha. É como se eu quisesse me jogar e deixar o vento me guiar para onde ele apontasse.

Leandro Augusto

13 de fevereiro de 2011

A Novela das Seis e Aquele Final Esquisito

Não chove tem um tempo bom. E ela se sentia tão mal por dentro, que, aparentemente, só mesmo a chuva pra molhar seu corpo velho cheio de rugas para fazê-la desistir desse rancor que, de si, tomava conta.

Essa noite, ela sonhou que encontrava sua filha. Ela estava no caixão – aquele caixão cor de rosa que havia comprado com tanta dor no coração. Elas se olhavam e a mãe só podia pensar que aquele caixão era pequeno demais para uma pessoa adulta. Ao mesmo tempo, grande demais para um bebê.

O sonho não passou disso. A filha, de olhos abertos –na verdade, arregalados. A mãe, terna e pensativa, fitava e mais nada. Ela reparou que a menina não piscava. Ela não piscou uma única vez! Ela era uma defunta, mas a fitava com tanta vivacidade.

Mas o sonho não passou disso.

Depois, preparou um chá, porque o médico a proibira de tomar café. Estava se sentindo ressacada, como na época em que dançava nos bailes até tarde. Como no dia em que conheceu seu único marido, o homem de sua vida, o única feito para ela e mais ninguém.

Seu marido morreu ontem. O enterro deveria ser essa tarde. Mas ela não quer se preocupar com isso. Não avisou ninguém. Nenhum vizinho escutou seus sussurros solitários e depressivos. Nenhum familiar a ligou, porque ninguém nunca ligava mesmo. Nem mesmo deus a viu chorar ao lado da cama, onde o marido se estirava, morto e pálido. Frio. Fúnebre. Cadaverístico.

Olhava para o corpo e pensava em como permanecê-lo por mais tempo, de modo que pudesse levar para frente a data de anunciar a viuvez. Olhava suas pernas e imaginava os pés que já não estavam mais lá. Olhava seu peito nu e repleto de pelos brancos totalmente branco. Olhava para o seu rosto e via o homem que sorriu para ela no baile, numa quente noite de verão seco que fazia comumente em sua cidade pequena. Conseguia ver os olhos daquela noite, cheios de vida, cheios de tesão, cheios de paixão.

Lembrou que, uma vez, uma vizinha a falou que a novela das seis tivera um final bem parecido com o de Romeu e Julieta. Só que, no livro, o homem morria e depois acordava, só que a mulher se matou junto e ela não se lembra muito bem. Será que posso fazer isso?, pensou. Mas, e se ele acordar?, desistiu.

Sentiu um cheiro de queimado, mistura ao barulho da água que já havia evaporado. Não quero mais tomar chá, pensou. Mesmo assim, tomou cinco minutos depois. De um jeito que ela não entendia ao certo, reparou que as coisas caminhavam. Que a engrenagem continuava a trabalhar, como técnica demais, como burocrática demais. E ela se viu forçada a prosseguir.

Olhou as contas a serem pagas e escreveu num papel que estava dentro da gaveta ao lado do morto os números de uma velha que não escreve desde os nove anos de idade. A aposentadoria não seria suficiente. Desejou voltar a ser criança. Desejou ser protegida e nada mais. Escorreu uma lágrima sobre o rosto e gritou “Meu marido morreu”, torcendo para, mesmo assim, não ser escutada pelos vizinhos.

João Hernesto