16 de fevereiro de 2012

Nanquim

Ele costumava emitir alguns sons enquanto coloria seus desenhos, que achava serem obras primas. Ele se dizia artista de talento não-reconhecido, apesar de todos sabermos que não passava de uma brincadeira de quem faz arte só por diversão. Os barulhos vinham da garganta e pareciam com gatos enquanto ronronam. Ele costumava pintar as unhas com a caneta de ponta grossa quando suas obras o chateavam. Vez e quando, as pessoas o pegavam olhando para a parede vazia com a mão esquerda toda preta de nanquim. E as unhas nada vazias. E a mente cheia.
Foi mais ou menos assim: estava em um parque de diversões quando foi abordado por um total estranho. Você não pode entrar aí, disse o estranho. A voz era bastante pateta, assim, como quando se quer imitar uma voz pateta e a voz acaba por sair pateta. Foi duro nas palavras. De alguma forma, as palavras lhe doeram muito, apesar de terem sido proferidas por um total estranho. Obedeceu e saiu de onde estava. Perguntava-se a razão pela qual aquele parque tão grande, tão perfeito, tão finalizado tinha uma área totalmente em construção. Bem no cantinho era essa área. Pensou haver algum tipo de perigo e não se movimentou para frente. Deu a volta e voltou a procurar sua família.
Depois de dar mais algumas voltas, depois de se perder e se achar, depois de persistir em não encontrar ninguém conhecido, resolveu parar para descansar. O que não havia reparado era que estava exatamente no local aonde não poderia estar, exatamente no local aonde fora proibido de sequer se aproximar. Mesmo assim, sentou-se por ver-se totalmente sozinho. Tentou lembra-se da roupa que seu grupo usava, ao menos as cores. Talvez isso o pudesse ajudar a selecionar para quem olhar naquela multidão contida no parque lotado de estranhos. Tentou lembrar-se e parou um pouco, fixando o olhar num ponto obscuro, num buraco no chão, num elevador inacabado.
Naquele momento, sabia que tinha pouco tempo até que o sol parasse de ensolarar aquela região. Pensou que deveria ser rápido e sua memória deveria ser rápida e rápido deveria ser o processo de achar o caminho. Por outro lado, precisava mesmo ver o que tinha no tal buraco. Olhava para o buraco como quem podia enxergar lá no fundo. Algumas madeiras dependuradas e alguns pregos formando, ao léu, algo como uma armadilha para seus pés curiosos. Lembrou-se da roupa.
O estranho usava um chapéu de cowboy, umas botas de cowboy e um cinto social. Os jeans eram mais claros e a camisa tinha um xadrez bem sutil, com cores claras e um marrom mais claro para escurecer esta frase. Vestia um cinto de couro largo e espesso, assim como cintos de couro. Parecia haver lábios abaixo do bigode grande e o bigode parecia ter sido cultivado por anos e anos. Ainda assim, precisava se lembrar da roupa de seus familiares, mas não conseguia.
No dia seguinte já não estava mais no parque e nem sequer se lembrava como o haviam levado de lá. Sabia, entretanto que suas memórias daquele horrível dia deveriam ser lembradas em seus desenhos feitos com nanquim. A psicóloga o observava com atenção, como quem quer analisar os traços tortos e mal feitos. O nanquim lhe borrava a mãe direita. O nanquim borrava o desenho, mas ele não conseguia sequer notá-lo. A psicóloga não emitia som algum. A psicóloga analisava e o nanquim escorria. O nanquim emitia sons parecidos com os de um tambor mexicano.
Ela disse que estava tudo bem, que ele estava em casa. Ele se sentiu à vontade, apesar de não a ter ouvido. Ele se concentrava naquele desenho torto. Ronronava e traçava traços do estranho mexicano. Depois de algum tempo que não soube exatamente quanto, pôde ouvir em meio a seus próprios múrmuros cochichos alheios. Soube não estar mais só, soube não estar na presença da psicóloga e seu desenho, somente. Sentiu medo de levantar a cabeça do desenho. Ainda assim, levantou-a. O desenho que tentava com muito esforço retratar se encontrava personificado ao lado da psicóloga sentada. Ela o ouvia cochichar em seu ouvido e dedurá-lo a audácia do dia anterior – e ele nem sequer sabia se era mesmo ontem o dia em que aconteceu tudo aquilo.
Não pôde segurar a vontade de fugir, de sair correndo daquela sala que o possuía, agora. Não pôde conter a vontade de gritar pela rua e balançar os membros num movimento assustado. Correu para casa. Torceu lembrar-se do caminho, mas sua casa parecia mais perto do que imaginava. Era como se as coisas tivessem todas mudado de lugar e elas quisessem parecer-lhe mais complicadas que de costume. Observou pessoas de nanquim passando com seus pés de nanquim. Observou pés de nanquim se arrastando pelas ruas e correndo de seus medos. Fugindo dos consultórios e dos mexicanos. Apertou o passo até chegar a casa.
Ao mirar a esquina de sua casa, percebeu haver uma esquina a mais do que de costume, mas não deu muita importância a isso, já que deveria chegar em casa e estava acostumado a ter sempre surpresas pelos caminhos de infância. Um estranho feito de sombra preta feito nanquim o abordou pedindo um cigarro. Não fumo, respondeu grosseiramente. Apertou o passo para fugir da sombra deixada pelo nanquim mexicano de suas mãos. Ao chegar à porta de casa, percebeu estar sendo seguido pelo homem feito de sombra, que, dessa vez, apresentava olhos brancos em volta e vermelhos ao centro. Um brilho de ensurdecer o tomava conta ao observar os olhos e a boca traçada de nanquim lhe pedindo fervorosamente o cigarro não dado.
Não tenho cigarros e não fumo, com licença. A mim não há problemas esperar que busque meu cigarro aí dentro, sei que o tem. Não tenho, moço, com licença.
Tentava desesperadamente fechar a porta de casa, enquanto o homem da sombra lhe segurava as mãos sujas implorando um cigarro. Dizia que não o queria machucar nem roubar nada, mesmo assim, teve medo e tentou fechar a porta. Os olhos brancos com vermelho sobressaindo do nanquim viraram para o lado, como quem chama alguém. Chamava alguém, ele sabia. Preciso fechar a porta para fugir de meus medos. E foi aí, e só aí que outros homens feitos de sombra apareceram e lhe olharam com ódio. Você nos negou, mas nós não o negamos. Chegamos para te buscar.
O desenho estava pronto. Não passava de um borrão.
Capadócio.