Acordou e tomou nota mental de seu sonho. Sonhou que havia
falhado, apesar de tal sentimento nunca ter estado em sua mente. Foram anos e
anos de tentativas aparentemente corretas e certeiras. Até que um simples sonho
teria mudado tudo. Suas pálpebras cansavam o sono desagradável, mas já era hora
de acordar. Hora de viver sua vida de aposentado. Hora de viver sua vida de
vizinho chato que não tem o que fazer e somente observa a vizinhança. Escovou
os dentes e levantou-se. Preparou o café e observou a rua silenciosamente.
As
mesmas pessoas passavam por ali. Os vizinhos indo trabalhar, as vizinhas indo à
feira. Os outros idosos diziam olá e desciam para uma caminhada matinal. O
cheiro de almoço começava a surgir. Seu estômago pedia comida. Foi até a
cozinha e preparou um café. Decidiu não almoçar. Voltou para sua cadeira e
adormeceu.
Sua
falecida mulher o chamava para o almoço. Sentava-se à mesa e comia de maneira
monótona. Ela comia de maneira ligeira. Os dois lançavam uns olhares rápidos um
para o outro. Ela dizia: vou morrer, você sabe. Ele não respondia. Talvez por
ser mais velho, pensava que não estaria vivo para que isso acontecesse. Ela
pegou seu prato e começou a lavar a louça. Ele deixava a louça na pia e voltava
para sua cadeira até que a preguiça chegasse e fosse a hora da soneca
vespertina.
Acordou
e viu que seu sonho se repetira. A mesma rotina de quando sua esposa ainda
vivia. O mesmo poder sob ela que exercia. O mesmo sentimento de falha que lhe
apossara. Não sentia-se desconfortável, mas sentia que sua mente deveria estar
travada no tempo e que isso não era muito comum. Talvez era chegada sua hora
também. Mas não era, para sua infelicidade. Deitou-se na cama às 15 horas de
uma tarde chuvosa. Fechou os olhos e preparou-se para, enfim, morrer. Mas isso
não aconteceu. Nem sequer uma sonequinha foi dada. E aí, seu pesadelo começou a
tornar-se real.
Abriu
os olhos e Arminda o observava tentar dormir. Que faz aqui, mulher? Não faço
nada, não pude dormir porque estou ansiosa com sua entrevista amanhã. Sua pele
era jovem novamente. Seus cabelos eram um castanho escuro e denso, tinha fios
grossos e longos. Não havia em seu rosto linhas de expressão e suas únicas
rugas eram ao redor da boca, pelas longas gargalhadas que costumavam dar ao
comentar da vizinhança. Sua barriga esperava sua primeira filha. Era grande e
redonda, como deveria ser. Suas costas um pouco arqueadas e suas pernas escancaradas
pela dificuldade de carregar a vida de sua filha.
Tomara
que tudo dê certo! Eu espero que este seja o emprego em que você vai se
aposentar. E foi. Era uma fábrica de artigos de padaria. Ele trabalharia como
vigia pela noite, começando às 20 h. e indo até 7 h. Ela o aprontaria a marmita
e o café da manhã assim que chegasse. Seu café era bastante íntimo. Era
bastante doce e ralo. Ele sempre preferiu mais forte, para misturar com leite. Mas
o que a Arminda fazia tinha gosto de amor e fidelidade. Tinha gosto de
permanência. Tinha gosto de Arminda pela manhã.
Ele se
via com os mesmos pensamentos daquela tarde ensolarada. Pedia a Deus que seu
emprego saísse, que sua filha fosse forte e saudável, que aquele café
continuasse sempre fraquinho e docinho. A casa precisava de alguns reparos e
eles pensavam em mudar-se. Mas, para isso, seu emprego teria de dar certo, sua
filha teria de ser forte e saudável. Mas principalmente, o café deveria
continuar fraquinho e docinho.
Ela lhe
deu um beijo acalentado de quem dá todo o suporte que um homem precisa. Ele não
sabia manifestar seus sentimentos, então só recebia.
Na
manhã seguinte, foi à tal entrevista e conseguiu a vaga. No primeiro dia, a
marmita havia sido arroz, feijão, frango e macarrão. Quando colocou a bolsa nas
costas, viu que estava mais pesada do que imaginara. A Arminda havia posto uma
blusa de frio mais grossa e um par de luvas negras e novas, que havia sido
comprado para aquela ocasião. A garrafa de café, que era a única da casa,
estava lá dentro e havia o suficiente para senti-la durante toda a noite. A
felicidade que sentiu foi quase incontrolável, mas não o bastante para se
conter quando ela perguntou se havia notado a presença dos itens e ele
respondeu que sim, sem muita expressão nem entusiasmo.
Abriu
os olhos e se viu deitado a chorar a ausência da Arminda. Lembrou-se que seus
dois filhos nasceram fortes e muito saudáveis. Lembrou-se que hoje seguiam suas
vidas em outras cidades e que recusou os convites quando lhe propuseram a morar
com um deles. Lembrou-se das constantes mudanças de casa, que cansavam a todos
na família. Lembrou-se do café, que continuou a ser fraquinho e docinho, mesmo
que nem uma palavra tivesse sido expressa como agradecimento durante toda sua
vida conjugal.
Fechou
os olhos e desejou que a Arminda voltasse mais uma vez. Ouviu que ela se
levantava da cama no outro quarto. Era por volta de 15 h. numa tarde fria e
ensolarada. Ouviu algum barulho e sentiu raiva do que ouvia da cozinha. Arminda
já era velha de novo, não conseguia mais prever seus movimentos. Procurava
insistentemente o bule para o café. Ouviu cada passo que a Arminda dava. Ouviu
que ela pegou o bule, pegou o filtro, pegou o pote com café e despejou no
filtro. Permanecia de olhos fechados e fingia dormir para não ter que ajudá-la.
O cheirinho do café de Arminda passava pelos cômodos. Ele abriu os olhos e quis
sorrir, mas sentia muita raiva da barulheira. Pra quê tanto barulho, Arminda? Desculpa,
Lu, respondeu-lhe a voz tremida e rouca de velha.
Quando
começou a levantar-se, pegar os óculos e colocar o chinelo, ouviu um barulho
forte, como se um boi tivesse caído no chão da cozinha. Na mesma hora, o
barulho da garrafa de café e do líquido desmantelando-se no chão. Mas já tá
caindo de novo, Arminda? Olha o que sua filha disse, que tem que ser mais
cuidadosa. Enquanto levanta-se com raiva de seu comportamento estabanado de
velha, sentia dó do café desperdiçado e da velha que teria que limpar tudo e
fazer mais um enquanto ele esperava em sua cadeirinha na frente da casa. Quando
chegou até a cozinha, viu Arminda estirada no chão, o café manchando sua saia
bege. Sentiu o gosto da Arminda despejado no chão. Sentiu que seu café e seu
cuidado teriam, a partir daquele momento, acabado. Tentou chorar, mas não
conseguiu. Ligou para seus filhos e disse que a Arminda havia morrido. No
enterro, todos lamentavam a morte de um anjo. Ele lamentava que não sentiria mais
o cheiro, o barulho, o gosto do café da Arminda. Todos derramavam lágrimas
sobre seu caixão e ele derramava lamentos de solidão inútil.
Quando
viu-se de volta à realidade, temeu abrir os olhos. Pensou que teria finalmente
sido levado desse mundo. Não fez nada por um tempo. Depois de alguns minutos,
ouviu alguém levantando-se da cama no outro quarto. Ouviu barulho de café sendo
preparado. Seus olhos fechados. Algumas panelas caíam e lhe impediam de
continuar dormindo. O cheiro e o gosto fraquinho e docinho lhe preenchiam a
boca e o nariz. Sabia que estava pronto para se reencontrar com ela. Abriu os
olhos e viu seu quarto escuro e um pouco molhado pela chuva que entrara pela
janela aberta. O cheiro lhe invadia cada segundo mais. Seu coração palpitava e
crescia a intensidade dos batimentos a cada novo passo. Sem querer, viu-se no
espelho e seus olhos estavam lacrimejados. Sabia que, também havia morrido. Lambeu
a boca e sentiu o gostinho azedo de lágrima que nunca mais sentira desde que
havia caído quando criança. Preparou-se para tomar seu café e dizer as palavras
que nunca disse. Arminda!, gritou. Cheguei! Na cozinha, nada novo. Só a garrafa
de café em cima da mesa, como se ela tivesse preparado e ido para a cadeirinha
esperá-lo. Despejou o café no copo e sentiu um gosto inesperado: gosto do café
que preparou para o almoço.
Seu
rosto parou de derramar as lágrimas, que não traziam a Arminda de volta.
Caminhou rumo à sua cadeirinha e esboçou: sinto sua falta. Os vizinhos voltavam
do trabalho. As crianças gritavam e aquilo o incomodava. Os velhos o
cumprimentavam. Ele chorava por dentro mais uma última vez. Depois de 3 anos,
veio a falecer.
João Hernesto.