22 de agosto de 2012

À Espera


Acordou e tomou nota mental de seu sonho. Sonhou que havia falhado, apesar de tal sentimento nunca ter estado em sua mente. Foram anos e anos de tentativas aparentemente corretas e certeiras. Até que um simples sonho teria mudado tudo. Suas pálpebras cansavam o sono desagradável, mas já era hora de acordar. Hora de viver sua vida de aposentado. Hora de viver sua vida de vizinho chato que não tem o que fazer e somente observa a vizinhança. Escovou os dentes e levantou-se. Preparou o café e observou a rua silenciosamente.
                As mesmas pessoas passavam por ali. Os vizinhos indo trabalhar, as vizinhas indo à feira. Os outros idosos diziam olá e desciam para uma caminhada matinal. O cheiro de almoço começava a surgir. Seu estômago pedia comida. Foi até a cozinha e preparou um café. Decidiu não almoçar. Voltou para sua cadeira e adormeceu.
                Sua falecida mulher o chamava para o almoço. Sentava-se à mesa e comia de maneira monótona. Ela comia de maneira ligeira. Os dois lançavam uns olhares rápidos um para o outro. Ela dizia: vou morrer, você sabe. Ele não respondia. Talvez por ser mais velho, pensava que não estaria vivo para que isso acontecesse. Ela pegou seu prato e começou a lavar a louça. Ele deixava a louça na pia e voltava para sua cadeira até que a preguiça chegasse e fosse a hora da soneca vespertina.
                Acordou e viu que seu sonho se repetira. A mesma rotina de quando sua esposa ainda vivia. O mesmo poder sob ela que exercia. O mesmo sentimento de falha que lhe apossara. Não sentia-se desconfortável, mas sentia que sua mente deveria estar travada no tempo e que isso não era muito comum. Talvez era chegada sua hora também. Mas não era, para sua infelicidade. Deitou-se na cama às 15 horas de uma tarde chuvosa. Fechou os olhos e preparou-se para, enfim, morrer. Mas isso não aconteceu. Nem sequer uma sonequinha foi dada. E aí, seu pesadelo começou a tornar-se real.
                Abriu os olhos e Arminda o observava tentar dormir. Que faz aqui, mulher? Não faço nada, não pude dormir porque estou ansiosa com sua entrevista amanhã. Sua pele era jovem novamente. Seus cabelos eram um castanho escuro e denso, tinha fios grossos e longos. Não havia em seu rosto linhas de expressão e suas únicas rugas eram ao redor da boca, pelas longas gargalhadas que costumavam dar ao comentar da vizinhança. Sua barriga esperava sua primeira filha. Era grande e redonda, como deveria ser. Suas costas um pouco arqueadas e suas pernas escancaradas pela dificuldade de carregar a vida de sua filha.
                Tomara que tudo dê certo! Eu espero que este seja o emprego em que você vai se aposentar. E foi. Era uma fábrica de artigos de padaria. Ele trabalharia como vigia pela noite, começando às 20 h. e indo até 7 h. Ela o aprontaria a marmita e o café da manhã assim que chegasse. Seu café era bastante íntimo. Era bastante doce e ralo. Ele sempre preferiu mais forte, para misturar com leite. Mas o que a Arminda fazia tinha gosto de amor e fidelidade. Tinha gosto de permanência. Tinha gosto de Arminda pela manhã.
                Ele se via com os mesmos pensamentos daquela tarde ensolarada. Pedia a Deus que seu emprego saísse, que sua filha fosse forte e saudável, que aquele café continuasse sempre fraquinho e docinho. A casa precisava de alguns reparos e eles pensavam em mudar-se. Mas, para isso, seu emprego teria de dar certo, sua filha teria de ser forte e saudável. Mas principalmente, o café deveria continuar fraquinho e docinho.
                Ela lhe deu um beijo acalentado de quem dá todo o suporte que um homem precisa. Ele não sabia manifestar seus sentimentos, então só recebia.
                Na manhã seguinte, foi à tal entrevista e conseguiu a vaga. No primeiro dia, a marmita havia sido arroz, feijão, frango e macarrão. Quando colocou a bolsa nas costas, viu que estava mais pesada do que imaginara. A Arminda havia posto uma blusa de frio mais grossa e um par de luvas negras e novas, que havia sido comprado para aquela ocasião. A garrafa de café, que era a única da casa, estava lá dentro e havia o suficiente para senti-la durante toda a noite. A felicidade que sentiu foi quase incontrolável, mas não o bastante para se conter quando ela perguntou se havia notado a presença dos itens e ele respondeu que sim, sem muita expressão nem entusiasmo.
                Abriu os olhos e se viu deitado a chorar a ausência da Arminda. Lembrou-se que seus dois filhos nasceram fortes e muito saudáveis. Lembrou-se que hoje seguiam suas vidas em outras cidades e que recusou os convites quando lhe propuseram a morar com um deles. Lembrou-se das constantes mudanças de casa, que cansavam a todos na família. Lembrou-se do café, que continuou a ser fraquinho e docinho, mesmo que nem uma palavra tivesse sido expressa como agradecimento durante toda sua vida conjugal.
                Fechou os olhos e desejou que a Arminda voltasse mais uma vez. Ouviu que ela se levantava da cama no outro quarto. Era por volta de 15 h. numa tarde fria e ensolarada. Ouviu algum barulho e sentiu raiva do que ouvia da cozinha. Arminda já era velha de novo, não conseguia mais prever seus movimentos. Procurava insistentemente o bule para o café. Ouviu cada passo que a Arminda dava. Ouviu que ela pegou o bule, pegou o filtro, pegou o pote com café e despejou no filtro. Permanecia de olhos fechados e fingia dormir para não ter que ajudá-la. O cheirinho do café de Arminda passava pelos cômodos. Ele abriu os olhos e quis sorrir, mas sentia muita raiva da barulheira. Pra quê tanto barulho, Arminda? Desculpa, Lu, respondeu-lhe a voz tremida e rouca de velha.
                Quando começou a levantar-se, pegar os óculos e colocar o chinelo, ouviu um barulho forte, como se um boi tivesse caído no chão da cozinha. Na mesma hora, o barulho da garrafa de café e do líquido desmantelando-se no chão. Mas já tá caindo de novo, Arminda? Olha o que sua filha disse, que tem que ser mais cuidadosa. Enquanto levanta-se com raiva de seu comportamento estabanado de velha, sentia dó do café desperdiçado e da velha que teria que limpar tudo e fazer mais um enquanto ele esperava em sua cadeirinha na frente da casa. Quando chegou até a cozinha, viu Arminda estirada no chão, o café manchando sua saia bege. Sentiu o gosto da Arminda despejado no chão. Sentiu que seu café e seu cuidado teriam, a partir daquele momento, acabado. Tentou chorar, mas não conseguiu. Ligou para seus filhos e disse que a Arminda havia morrido. No enterro, todos lamentavam a morte de um anjo. Ele lamentava que não sentiria mais o cheiro, o barulho, o gosto do café da Arminda. Todos derramavam lágrimas sobre seu caixão e ele derramava lamentos de solidão inútil.
                Quando viu-se de volta à realidade, temeu abrir os olhos. Pensou que teria finalmente sido levado desse mundo. Não fez nada por um tempo. Depois de alguns minutos, ouviu alguém levantando-se da cama no outro quarto. Ouviu barulho de café sendo preparado. Seus olhos fechados. Algumas panelas caíam e lhe impediam de continuar dormindo. O cheiro e o gosto fraquinho e docinho lhe preenchiam a boca e o nariz. Sabia que estava pronto para se reencontrar com ela. Abriu os olhos e viu seu quarto escuro e um pouco molhado pela chuva que entrara pela janela aberta. O cheiro lhe invadia cada segundo mais. Seu coração palpitava e crescia a intensidade dos batimentos a cada novo passo. Sem querer, viu-se no espelho e seus olhos estavam lacrimejados. Sabia que, também havia morrido. Lambeu a boca e sentiu o gostinho azedo de lágrima que nunca mais sentira desde que havia caído quando criança. Preparou-se para tomar seu café e dizer as palavras que nunca disse. Arminda!, gritou. Cheguei! Na cozinha, nada novo. Só a garrafa de café em cima da mesa, como se ela tivesse preparado e ido para a cadeirinha esperá-lo. Despejou o café no copo e sentiu um gosto inesperado: gosto do café que preparou para o almoço.
                Seu rosto parou de derramar as lágrimas, que não traziam a Arminda de volta. Caminhou rumo à sua cadeirinha e esboçou: sinto sua falta. Os vizinhos voltavam do trabalho. As crianças gritavam e aquilo o incomodava. Os velhos o cumprimentavam. Ele chorava por dentro mais uma última vez. Depois de 3 anos, veio a falecer.
João Hernesto.