26 de novembro de 2009

Capítulo I


- Eu não sou louco, não sei o que faço aqui.

- Ninguém aqui é louco, realmente. A gente só tem mais coragem de fazer o que tem vontade. Pudor, é essa a palavra. A gente não tem pudor, sabe?

- Acho que foi isso o que nos distanciou da sociedade. Quem te trancou aqui?

- Eu vim por conta própria.

- Eu também – mas não era verdade.

Sua família o levou à um daqueles hospitais de gente maluca. Disseram que não podiam cuidar dele como ele tinha de ser cuidado. Ele precisava, disseram, de remédios. Naquela clínica ele conseguiria manter o uso e se viciar às novas drogas.

- Estou me sentindo um pouco mal. Vou para o meu quarto.

Desde quando louco se sente mal?, pensou Francisco. De todo modo, ele não se sentia muito bem em seu quarto. Mas, como mudara-se para lá a pouco, não conhecia muita gente. Resolveu voltar para o seu quarto também. Apesar de que seu quarto o enojava.

Era frio e o quarto estava quente por causa das cinzas de cigarro misturadas às excreções que mantinha durante todo o tempo em que esteve lá. Além disso, um aspecto psicológico afetava também o aquecimento do quarto. Seu corpo estava quente e com raiva. Ele não estava triste, ele estava queimando, tamanha intensidade de profusão de emoções que habitavam seu interior.

A privada não estava funcionando. Depois de três dias que estava lá, não podia se sentar para defecar, as fezes misturadas ao xixi estavam quase tocando suas nádegas.

- Por favor, gostaria de dois recipientes com tampa e mais um maço de cigarros.

A enfermeira rapidamente trouxe o seu pedido. Eram dois recipientes de cor quase marrom, um bege bem escuro. Francisco riu-se. Achou bem pertinente a escolha das cores pela enfermeira. Como não tinha nada para pegar a bosta que produzira esses três passados dias, pegou com a mão. Quase vomitou, mas depois de um tempo achou divertido sentir a maciez que ela tinha. Além do mais, ele estava a pegar o que era seu. Começou a achar injusto dar suas fezes para qualquer esgoto sujo, foram produzidas por ele, devem estar com ele. Os o recipiente não eram tão grandes, logo estariam cheios também. Aí ele teria de achar um outro lugar para esconder seu mais novo prazer: acariciar e modelar seu cocô.

O outro recipiente era para guardar as cinzas dos cigarros que fumava. Ele havia parado antes de entrar na clínica, mas pediu à sua mãe que comprasse um pacote grande de cigarros para que pudesse passar o tempo e rir com os diversos jeitos como soltava a fumaça pela boca e pelo nariz. Naquela manhã, ele tentara soltar pelos olhos, mas não conseguira. Decepção.

O quarto era bem clarinho, de um jeito que o incomodava. Quando sua mãe resolveu pintar a casa daquela mesma cor que chamava de gelo (ele não entendia o porquê do nome), argumentou e brigou até conseguir que ela pintasse de branco – que, para ele, era a mesma coisa. Aquele branco, ou gelo, o fazia sentir louco. Aquela monocromia toda era desgastantes, por isso queria sair e fazer amizade.

Sua cama tinha um colchão duro, o que o fazia por vezes escolher dormir no chão, perto de suas fezes.

Na manhã do dia passado ele havia pedido à mãe alguns livros e discos que ela costumava ler e ouvir quando era garoto. O sentimento nostálgico estava muito presente. La não tinha trazido, disse brava: “E você acha que está num acampamento de férias? Vai se curar e voltar para casa trabalhar e trazer dinheiro para a sua família!”

Mesmo assim, ele lembrava do tom da voz de sua mãe acompanhando Chico Buarque cantar. Ela era um pouco desafinada, e sua mente infantil o fazia rir de vez em quando. E aqueles livros traziam um cheiro muito específico. Eles cheiravam seu quarto e os ratos que, vez ou outra, passavam sobre eles. Era um cheio agradável.

Não havia pia nenhuma, somente um balde com água. Ele se lavava no banheiro coletivo do hospital. Lá, ele via muitos homens loucos. Era interessante imaginar que, se ele era louco, muitos eram mais que ele. Um dia, um dos loucos lavou seus olhos com sabão e gritava de dor. Mas era uma dor bonita, ele ria e gritava. Francisco aprendia a ver a dor como arte. No banheiro, a cor branca predominava. Mas com uma diferença, entre os azulejos havia mofo e cheiro ruim. Era como se aquele ambiente favorecesse a loucura alheia, o que parecia ser irônico.

Naquela noite, Francisco foi dormir cedo. Antes de escurecer. Ele podia ouvir o futebol dos malucos. Ele sonhou com o Chapeleiro Maluco da história de Lewis Carroll. Ele o oferecia uma xícara de chá. “Que sabor?”, perguntou. “Cocô”, respondeu o Chapeleiro. “O meu favorito”, pensou, mas não disse. O chá estava ótimo, e, para acompanhar, havia uns biscoitos de sabor diferente. “De que são feitos esses biscoitos, senhor?”. “São feitos de cinzas de cigarro!”, disse o Chapeleiro, soltando uma gargalhada gostosa. E os dois riram e se embebedaram de tanto cocô com cinzas de cigarro.

Quando acordou, ainda na mesma noite, Francisco olhou para o recipiente que continha as fezes e se sentiu faminto. Dormiu de novo e sonhou que comia sua própria bosta, servida com creme de aspargos e vinho tinto suave. Foi uma delícia.No sonho, os pratos eram brancos, branco gelo. Aquilo o incomodava, portanto resolveu acordar. E acordou.


João Hernesto

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