Não chove tem um tempo bom. E ela se sentia tão mal por dentro, que, aparentemente, só mesmo a chuva pra molhar seu corpo velho cheio de rugas para fazê-la desistir desse rancor que, de si, tomava conta.
Essa noite, ela sonhou que encontrava sua filha. Ela estava no caixão – aquele caixão cor de rosa que havia comprado com tanta dor no coração. Elas se olhavam e a mãe só podia pensar que aquele caixão era pequeno demais para uma pessoa adulta. Ao mesmo tempo, grande demais para um bebê.
O sonho não passou disso. A filha, de olhos abertos –na verdade, arregalados. A mãe, terna e pensativa, fitava e mais nada. Ela reparou que a menina não piscava. Ela não piscou uma única vez! Ela era uma defunta, mas a fitava com tanta vivacidade.
Mas o sonho não passou disso.
Depois, preparou um chá, porque o médico a proibira de tomar café. Estava se sentindo ressacada, como na época em que dançava nos bailes até tarde. Como no dia em que conheceu seu único marido, o homem de sua vida, o única feito para ela e mais ninguém.
Seu marido morreu ontem. O enterro deveria ser essa tarde. Mas ela não quer se preocupar com isso. Não avisou ninguém. Nenhum vizinho escutou seus sussurros solitários e depressivos. Nenhum familiar a ligou, porque ninguém nunca ligava mesmo. Nem mesmo deus a viu chorar ao lado da cama, onde o marido se estirava, morto e pálido. Frio. Fúnebre. Cadaverístico.
Olhava para o corpo e pensava em como permanecê-lo por mais tempo, de modo que pudesse levar para frente a data de anunciar a viuvez. Olhava suas pernas e imaginava os pés que já não estavam mais lá. Olhava seu peito nu e repleto de pelos brancos totalmente branco. Olhava para o seu rosto e via o homem que sorriu para ela no baile, numa quente noite de verão seco que fazia comumente em sua cidade pequena. Conseguia ver os olhos daquela noite, cheios de vida, cheios de tesão, cheios de paixão.
Lembrou que, uma vez, uma vizinha a falou que a novela das seis tivera um final bem parecido com o de Romeu e Julieta. Só que, no livro, o homem morria e depois acordava, só que a mulher se matou junto e ela não se lembra muito bem. Será que posso fazer isso?, pensou. Mas, e se ele acordar?, desistiu.
Sentiu um cheiro de queimado, mistura ao barulho da água que já havia evaporado. Não quero mais tomar chá, pensou. Mesmo assim, tomou cinco minutos depois. De um jeito que ela não entendia ao certo, reparou que as coisas caminhavam. Que a engrenagem continuava a trabalhar, como técnica demais, como burocrática demais. E ela se viu forçada a prosseguir.
Olhou as contas a serem pagas e escreveu num papel que estava dentro da gaveta ao lado do morto os números de uma velha que não escreve desde os nove anos de idade. A aposentadoria não seria suficiente. Desejou voltar a ser criança. Desejou ser protegida e nada mais. Escorreu uma lágrima sobre o rosto e gritou “Meu marido morreu”, torcendo para, mesmo assim, não ser escutada pelos vizinhos.
João Hernesto
Sinto que alguém esta mudando de humor. De novo. Adorei o texto.
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