11 de abril de 2011

Era uma vez um eu qualquer

E acabou. Acabou desse jeito torto, sem nexo, sem um registro discursivo de despedida. Acabou num “tá bom”. Morre aqui mais um entre os outros. Morre aqui aquele por quem sofria uma horrível dor só de imaginar-me sem. Morre aqui minha alma, morre nossa alma. Morre aqui o mundo para mim.

Uns gritos, uns rancores. Uns sonos, uns estresses. Tudo isso junto. Só faltou o amor. Só faltou olharmos para dentro e termos vontade ainda. Faltou querermos não escrever este texto. Faltou matar deste texto, toda a fúria, toda a mágoa. Faltou arrancar deste texto sua existência.

Não faltou nada. Tá bom assim. Morro um pouco a cada dia, mas afinal de contas, já morri tantas vezes. Vai ver agora nem vai ser tão doloroso assim. Vai ver, eu me depreciei. Vai ver eu já havia me matado enquanto me envolvia na maravilha que é pensar em você.

O mundo perdeu sua cor. Perdeu seu carisma. As pessoas não são mais interessantes, ou eu não o sou a elas. Eu não sou interessante para você. A vida perde, neste ponto em que me encontro, todo o seu sabor, toda a sua mistura de sabores. Perde aqui, você. E é como se sem você, não tivesse mais nada agradável, nada atraente.

O texto em questão só me faz ver o que eu não quero ver. Só me faz chorar do mais profundo que posso atingir de mim mesmo. Só me faz pensar em nada de bom, em nada de saudável. Só me faz pensar que agora, não faz sentido. Que agora, eu não conseguiria – mesmo que forçosamente – ver essa sinestesia poética que é viver e ser eu mesmo.

Estou morrendo agora. Não me procurem. Eu não me procuraria. Não se preocupem, eu não me preocuparia. Não me salvem, eu não quero ser salvado. E não quero me salvar. Quero a morte, no sentido mais profundo e confortante que me traz essa palavra. Não quero a comida, quero a fome. “Não quero que ignorem meus gritos de dor, e quero que eles sejam ouvidos.” Quero ouví-los uma última vez, para nunca mais abrir os olhos. Quero a morte real, não quero a morte poética.

Leandro Augusto.

8 de abril de 2011

Tchekhov

Foi escurecendo a vista. E foi ficando cada vez mais difícil ver um palmo que a sua frente estivesse. Foi caindo no chão sem nem perbeber. Quando viu, estava morto.

No primeiro dia, sentia seu coração bater forte e rápido. Desritmado. Analógico. Anatômico. Anômalo. Perceber que alguma coisa estava por vir. Nesse dia, não saiu de casa. Não tomou banho. Nem sequer escovou os dentes. Olhou para suas conquistas aristocráticas e aristotélicas e sentiu ínfimo nojo. Sentiu asco de ser o que pensou em ser.

No segundo dia, acordou numa angústia que consumia seus orgãos por completo. Começava no cérebro e ia descendo até atingir o pé. Vinha de dentro para fora. Vinha do interior para o exterior. Soube que algo deveria ser feito. Olhou mais uma vez para suas conquistas e lembrou-se que não só era gostoso ter tido a experiência a que cada um de seus afetivos objetos lhe remetia, como era necessário mantê-los sempre ávidos em sua mente e em seu cômodo. Materialismo o consumia.

No terceiro dia, era como se lhe tivessem tirado o coração. Era como se tivessem lhe tirado o coração e não tivessem deixado nada além de sua mente. Como se tivessem lhe tirado o coração e não tivessem deixado nada além de sua mente cheia de pensamentos díspares e dicotômicos. Se tivessem lhe tirado o coração. Entrou em um ciclo e não conseguia pensar sistematicamente. Dormiu o dia todo.

No quarto dia chorou. Chorou tanto que tossia intensamente. Sua tosse vinha acompanhada de catarro e sangue. Seu sangue tinha gosto de sangue e catarro. Tinha gosto de ainda preciso disso e de não preciso mais disso. Chorou e tossiu por algum tempo. Depois, saiu de casa e comeu qualquer coisa na rua. Voltou para casa. Chorou em casa. Morou em casa. Não habitou sua casa. Quis ter uma casa.

Passou o quinto dia lendo. Leu Allan Poe: “Eu me tornei insano com longos intervalos de horrível sanidade.” Leu ainda Tchekhov: “Chegou maquinalmente em casa, deitou-se no divã sem tirar o uniforme e... morreu.” Passou para Fernando Abreu: “Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui?” No fim do dia, leu Mautner, que lhe pareceu bastante apropriado: “Ele deve ter beijado a lama, bebido a chuva, dormido profundamente com o corpo deitado em cima da terra. Foi naquele dia que ele morreu.”

O sexto dia foi um ótimo dia. Acordou e o sol brilhava claro. Acendia seu quarto com uma estranha luz de outono. Abriu a janela e observou o desenho que as folhas secas faziam no chão. Abriu a janela e observou o desenho que as folhas secas faziam quando contornavam o ar ao cair incessantemente. Comeu alguma coisa para dizer que matou a fome. Bebeu alguma coisa para dizer que matou a sede. Embriagou-se para dizer que não se importava. Embriagou-se e dormiu feito pedra.

O sexto dia continuou por muito tempo e acabou por ser o maior dia de sua vida. Acabou por ser o sexto dia o último de sua vida. Ainda naquela tarde, acordou de um sonho real. Acordou tossindo um pouco. Chorando um pouco. Sorrindo um pouco. Olhando um pouco. Resolveu escrever.

“Não aceito mais viver esse tormento. Não aceito mais me esconder. Não posso aguentar um dia a mais tendo que fingir a mim mesmo que minha vida é boa. Minha vida é satisfatória. Minha vida passou como passa o outono: deixando rastros. Minha vida vai passar, passou, está indo e ninguém está nem aí. Eu vou morrer agora e sei que ninguém vai me procurar tão cedo.

É bastante provável que meu corpo seja consumido pelos vermes e insetos que habitam meu chão forrado de madeira importada. Mas quem é que liga em ter um chão com madeira europeia, em ter pinturas raras pelas paredes da casa, em ter livros de gente maluca e reverenciada? Eu não sei porque aceitei viver esse mundo imaginário por tanto tempo. Não posso mais aguentar.

Deixem essa casa à venda, com tudo o que há dentro. Não deem a ninguém de minha família. Deixem que meu cachorro morra sufocado na corrente, sem comida, sem água, sem companhia. Deixem que as coisas se ajeitem. Deixe tudo à deriva, como sempre esteve. Deixem de acreditar em mentiras convencionadas. Não posso mais ser escravo desse sistema.

Adeus.

Carlos Roche”

Levantou-se e sorriu. Abriu a janela para ver as folhas e o desenho que compunham quando caíam das árvores. O outono já passara. Passaram-se também meses, mas os meses eram como dias. As folhas já foram recolhidas. O inverno já chegara. Deu uma última olhadela ao redor de sua casa e destravou as portas e janelas, deixando, assim, a casa toda exposta aos seres vivos que de seu corpo se alimentariam alguns minutos depois. Foi escurecendo a vista. E foi ficando cada vez mais difícil ver um palmo que a sua frente estivesse. Foi caindo no chão sem nem perbeber. Quando viu, estava morto.

João Hernesto