8 de abril de 2011

Tchekhov

Foi escurecendo a vista. E foi ficando cada vez mais difícil ver um palmo que a sua frente estivesse. Foi caindo no chão sem nem perbeber. Quando viu, estava morto.

No primeiro dia, sentia seu coração bater forte e rápido. Desritmado. Analógico. Anatômico. Anômalo. Perceber que alguma coisa estava por vir. Nesse dia, não saiu de casa. Não tomou banho. Nem sequer escovou os dentes. Olhou para suas conquistas aristocráticas e aristotélicas e sentiu ínfimo nojo. Sentiu asco de ser o que pensou em ser.

No segundo dia, acordou numa angústia que consumia seus orgãos por completo. Começava no cérebro e ia descendo até atingir o pé. Vinha de dentro para fora. Vinha do interior para o exterior. Soube que algo deveria ser feito. Olhou mais uma vez para suas conquistas e lembrou-se que não só era gostoso ter tido a experiência a que cada um de seus afetivos objetos lhe remetia, como era necessário mantê-los sempre ávidos em sua mente e em seu cômodo. Materialismo o consumia.

No terceiro dia, era como se lhe tivessem tirado o coração. Era como se tivessem lhe tirado o coração e não tivessem deixado nada além de sua mente. Como se tivessem lhe tirado o coração e não tivessem deixado nada além de sua mente cheia de pensamentos díspares e dicotômicos. Se tivessem lhe tirado o coração. Entrou em um ciclo e não conseguia pensar sistematicamente. Dormiu o dia todo.

No quarto dia chorou. Chorou tanto que tossia intensamente. Sua tosse vinha acompanhada de catarro e sangue. Seu sangue tinha gosto de sangue e catarro. Tinha gosto de ainda preciso disso e de não preciso mais disso. Chorou e tossiu por algum tempo. Depois, saiu de casa e comeu qualquer coisa na rua. Voltou para casa. Chorou em casa. Morou em casa. Não habitou sua casa. Quis ter uma casa.

Passou o quinto dia lendo. Leu Allan Poe: “Eu me tornei insano com longos intervalos de horrível sanidade.” Leu ainda Tchekhov: “Chegou maquinalmente em casa, deitou-se no divã sem tirar o uniforme e... morreu.” Passou para Fernando Abreu: “Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui?” No fim do dia, leu Mautner, que lhe pareceu bastante apropriado: “Ele deve ter beijado a lama, bebido a chuva, dormido profundamente com o corpo deitado em cima da terra. Foi naquele dia que ele morreu.”

O sexto dia foi um ótimo dia. Acordou e o sol brilhava claro. Acendia seu quarto com uma estranha luz de outono. Abriu a janela e observou o desenho que as folhas secas faziam no chão. Abriu a janela e observou o desenho que as folhas secas faziam quando contornavam o ar ao cair incessantemente. Comeu alguma coisa para dizer que matou a fome. Bebeu alguma coisa para dizer que matou a sede. Embriagou-se para dizer que não se importava. Embriagou-se e dormiu feito pedra.

O sexto dia continuou por muito tempo e acabou por ser o maior dia de sua vida. Acabou por ser o sexto dia o último de sua vida. Ainda naquela tarde, acordou de um sonho real. Acordou tossindo um pouco. Chorando um pouco. Sorrindo um pouco. Olhando um pouco. Resolveu escrever.

“Não aceito mais viver esse tormento. Não aceito mais me esconder. Não posso aguentar um dia a mais tendo que fingir a mim mesmo que minha vida é boa. Minha vida é satisfatória. Minha vida passou como passa o outono: deixando rastros. Minha vida vai passar, passou, está indo e ninguém está nem aí. Eu vou morrer agora e sei que ninguém vai me procurar tão cedo.

É bastante provável que meu corpo seja consumido pelos vermes e insetos que habitam meu chão forrado de madeira importada. Mas quem é que liga em ter um chão com madeira europeia, em ter pinturas raras pelas paredes da casa, em ter livros de gente maluca e reverenciada? Eu não sei porque aceitei viver esse mundo imaginário por tanto tempo. Não posso mais aguentar.

Deixem essa casa à venda, com tudo o que há dentro. Não deem a ninguém de minha família. Deixem que meu cachorro morra sufocado na corrente, sem comida, sem água, sem companhia. Deixem que as coisas se ajeitem. Deixe tudo à deriva, como sempre esteve. Deixem de acreditar em mentiras convencionadas. Não posso mais ser escravo desse sistema.

Adeus.

Carlos Roche”

Levantou-se e sorriu. Abriu a janela para ver as folhas e o desenho que compunham quando caíam das árvores. O outono já passara. Passaram-se também meses, mas os meses eram como dias. As folhas já foram recolhidas. O inverno já chegara. Deu uma última olhadela ao redor de sua casa e destravou as portas e janelas, deixando, assim, a casa toda exposta aos seres vivos que de seu corpo se alimentariam alguns minutos depois. Foi escurecendo a vista. E foi ficando cada vez mais difícil ver um palmo que a sua frente estivesse. Foi caindo no chão sem nem perbeber. Quando viu, estava morto.

João Hernesto

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