5 de setembro de 2010

Eu-lírico: eu mesmo

O cigarro está acabando. Melhor eu descer para comprar mais. Mas, antes, preciso falar com você sobre nós dois. Pra falar a verdade, nem sei como começar. Gosto de grandes discursos, com introdução, desenvolvimento de ideia, argumentação e conclusão, mas acho que vou começar da conclusão. Não quero mais esse casamento. Ele me faz mal. A cidade me faz mal por causa desse casamento. Eu já perdi um irmão aqui por simples injustiça dos limitantes, e eu nem me lembro mais dessa história porque perdi o texto que escrevi sobre isso. Mas eu não acho que não goste mais de São Paulo por causa disso. Não gosto de São Paulo porque passo por todos os lugares em que fomos felizes juntos e me lembro que não te amo mais. E não te amar mais me faz mal. Não sou insensível, mas não quero mais ser tão sensível. Preciso pensar em mim mesmo, preciso de um egocentrismo que só eu posso conceder a mim mesmo. E eu realmente não sei por que não te amo mais, só deixei de te amar, porque não quero mais levar essa vida que tenho levado. Já não me dá mais prazer ensinar o português para crianças retardadas, não aguento mais preencher diários de sala, fazer reunião de pais, não gosto mais de linguística. Achava que fosse uma grande crise se passando dentro de mim, mas isso vem me matando nos últimos 3 anos. E você? Bem, você já não me excita mais e eu já não aguento mais te ouvir gemer e fingir um orgasmo porque você não faz isso bem. Não quero mais te ver reclamando que tem que lavar, passar, enxugar, cozinhar e tantas coisas mais. Não quero mais ter que chegar em casa e me deparar com um lugar irritantemente limpo e uma esposa morta no sofá da sala assistindo à novela. Não quero mais isso para mim. Acabo de pedir demissão e deixar a escola pelos ares por não ter ninguém para me substituir. Não vou receber o salário desse mês, porque estou de saída, aliás, estou de mudança permanente. Vou para as Minas Gerais encontrar paz, se é que elas me vão oferecer isso. Você pode ir buscar o dinheiro amanhã na escola, com a Vânia. Diz para ela que não tem notícia de mim. Vou descer e comprar um cigarro, não volto mais. Não preciso de roupas limpas, obrigado. Comprarei qualquer coisa que me sirva. Adeus.

Não comprei cigarro algum, porque, naquele dia, eu parei de fumar.

João Hernesto.

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