19 de outubro de 2011

A Rua

Todos os dias que passava por lá, via a rua bastante cheia. Costumava passar por ali antes de chegar à casa de sua família. Talvez por isso mesmo não sentisse necessidade de parar em um de seus cafés e pensar na vida. Na maior parte das vezes, tinha pressa ou estava contente demais para reparar naquela rua que nada de mal a fazia.

Um dia, estava bastante triste. Sentiu saudade de casa, saudade de sua mãe e de um cafuné durante a manhã de domingo. Saudade de assistir a desenhos animados em dias de falta de aula. Foi para a casa de sua família. Tudo parecia bastante vazio, as ruas eram frias e escuras. Algo a fez pensar que seria seu humor que fazia esses sentimentos transparecerem. A rua estava cheia, o único lugar da cidade cheio. Estranhou, mas seguiu. Chegou ao seu destino e recebeu um abraço carinhoso. Passou o feriado lá.

Num outro dia, estava feliz, muito feliz. Havia recebido a notícia de que conseguira a liberação para fazer um intercâmbio. A primeira coisa que quis fazer foi correr a casa de sua mãe para receber um daqueles abraços fortes. Passou pela rua, que fazia esquina com a casa onde nasceu e foi criada, e – obviamente – estava lotada de pessoas estranhas.

Ela lembrava-se de que a rua sempre esteve cheia. As pessoas sempre foram estranhas e tomavam seus cafés e fumavam seus cigarros. Percebia, ainda criança, que alguns choravam, outros riam. Percebia que alguns iam acompanhados, outros iam sozinhos. Mas percebia mesmo que as pessoas eram estranhas, puramente estranhas. Estranhas por não conhecer, estranhas por não compreender.

Ficou alguns anos sem visitar a rua por estar longe demais. Começou a montar uma vida fora de seu país e se esquecia lentamente de seu passado, da saudade que sentia de sua mãe, da rua cheia de gente estranha. Começou a viver e não pensar. Começou a viver do futuro.

É claro que ela teve de voltar. Quando voltou, disseram que sua mãe havia tido um problema na saúde e não agüentou o tratamento. A primeira coisa de que sentiu vontade foi ir para casa e ter um abraço de sua mãe. Só que ela não estava lá. Passou pelo caminho que fazia todos os dias quando voltava da escola. Passou pela rua. Naquele dia a rua estava vazia. Ela pensou que nunca aconteceria, mas aconteceu.

Sentou-se no primeiro café daquela rua e pediu um expresso. Não gosta de café. Na verdade, odeia café. Mesmo assim, pediu. Olhou a casa onde cresceu, a casa onde sua mãe faleceu. Viu sua vida inteira naquela rua. Desejou ter feito parte dela mais ativamente, desejou não tê-la achado estranha. Tomou o café e partiu para casa. Naquela noite, não dormiu e botou a culpa no café.

Nos dias que se passaram, sentiu necessidade de ir à rua, ver as pessoas estranhas de perto. Não foi em nenhum desses dias. Pensou que não a faria bem estar lá. Então, só desejou. Às vezes chorava, às vezes sorria. Às vezes pensava que a vida continuaria normalmente, mas sabia que não.

Passado um mês que havia chegado do país, já conseguira um bom emprego perto do bairro onde morava. Isso a fazia ir ao trabalho a pé, para se exercitar no corpo e na mente. Sentiu necessidade de estar na rua, de olhar para as pessoas estranhas, de ser mais uma naquela profusão de mentes. Assim pensando, pegou os dois ônibus que a levavam a seu destino.

Encontrou a rua. Uma felicidade súbita a invadiu. Os cafés estavam vazios. Estranhou, mas resolveu ficar. Tomou um, dois, três, muitos cafés. Pensou que não dormiria naquela noite. Reparou que as pessoas chegavam aos poucos. Aos poucos também, saíam e rodiziavam com as próximas a chegar. Observou e prestou atenção nas conversas. Falavam sobre trabalho, relacionamento, dificuldade de locomoção, reforma política, mães. Permaneceu sentada o dia todo. Tomou outros cafés e observou. Sentiu-se em casa. Não saiu mais de lá.

Capadócio.

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