- Ainda bem que voltamos, que não entramos em casa. Pelo menos a inspiração veio que nem vem o cachorro quando seu dono chama – me pareceu um comentário totalmente inútil, mas foi pertinente, já que resultou nesse texto que o leitor (vossa senhoria) está prestes a ler.
As ruas estavam bem cheias. A praça da cidade nem se fala. Mal posso arriscar contar quantas pessoas estavam presentes naquele show de meia tigela. Nós havíamos acabado de deixar o teatro e resolvemos infiltramo-nos em meio à plateia assídua. Ele escutava com suas mãos na cintura. Prestem bem atenção, as mãos na cintura, mas os pés estavam acompanhando o ritmo. Um simples e mero estudo de linguagem corporal preveria que aquela cara de insatisfação e de blasé não era real, não expressava o sentimento contido em seu peito. Ele gostava daquela bandinha que fingia tocar Beatles. Quem são os Beatles para eles?! Aquele vocalista com pinta do que na minha época chamávamos de CDF, ele não devia conhecer música alguma que não fosse Twist and Shout.
- A próxima também é dos Beatles – ele disse. “Well, we danced through the night”, dizia. Na verdade, parecia ser o único verso que o panaquinha sabia cantar em inglês, e o Leandro cantava a música toda como se realmente conhecesse Beatles.
- Você não conhece realmente Beatles, certo?
- Mas é claro que sim. Adoro! Você não?
Os besouros, como gostávamos de chamar eu e meu irmão, eram tudo para nós. Eram a melhor banda, são os melhores em toda a minha vida. Eles me mostraram a atitude do bom e velho roque em rou. Eles e Mafalda cresceram comigo. Agora, quem são os Beatles para a geração dos 90 e do 00? Quem são os Beatles, se não forem quem eu sei que são? Que eram. Não, “que são” mesmo.
Depois de ele mostrar seus dotes linguisticos, que (diga-se de passagem) eram bem melhores do que os do vocalista, eis que reparo em uma garotinha, por assim dizer, a olhar o meu rapaz. Ela o olhava, e admirava seus dotes linguísticos, sua expressão blasé e ao mesmo tempo interessadíssima, e sua beleza, é claro. A sua beleza a inspirava o olhar. Franjinha batendo no olho, a ponto de prejudicar a visão. Além da bela franja, o cabelinho curto no pescoço, enroladinho para fora, só nas pontas. Ela era baixa, mas usava salto alto, para ficar mais baixa, obviamente – nenhum homem desiste da idéia de não reparar nas mais baixas que colocam salto estrategicamente para beijar algum pretendente. Ela o olhava e esperava olhar de volta, mas ele estava vidrado, de um jeito desinteressado, na banda medíocre a cantar Beatles mediocremente. Reparei que esse jeito desinteressado é a nova moda entre os novos seguidores do roque em rou.
- Vamos comer lanche de trailer?
- Claro, vamos também morrer de colesterol?
- E ainda pagar por isso! Quanto benefício, meu deus.
Resolvi aceitar, mas deixando claro que não havia-me esquecido do convite que o fiz para tomar vinho comigo. Ele não havia-se esquecido, ainda bem.
Quando saímos do teatro, resolvemos passar em sua casa para buscar uma blusa de frio. Mas não entramos, ele simplesmente não quis mais. Bem típica inconstância de meu amigo. Depois ele disse que serviu de inspiração. Não sei se acredito.
Depois de entupirmos as veias de óleo Liza, fomos finalmente para minha casa; ele cumprira a promessa depois de muito tempo! Na verdade já faz um tempo que o Leandro me deixa de lado para ficar com seu amigo novo, sua prioridade. Ele o chama de luz, desculpe, na verdade é Luz.
- Este vinho não é dos baratos, mas é muito bom também – senti sua cara de decepção.
Aliás, uma ótima qualidade dele é a expressão facial. Sempre me diz tudo o que preciso saber e ele não contaria por delicadeza e por cordialidade.
Depois de ele começar a embananar as palavras, resolvi colocá-lo contra a parede:
- Quem são os Beatles?
- Os Beatles? Porque essa pergunta agora? – ele fez silêncio a favor de que eu esquecesse a pergunta, como não esqueci ele prosseguiu - Bem, os Beatles são uns carinhas aí que tocaram nos anos 60, eu acho. Minha mãe sabe dizer exatamente. Ela adorava dançar ao som deles. Na verdade eu fui descobrir os Beatles além do Twist and Shout – eu sabia que era só isso o que ele conhecia! – aqui em Mariana. Um amigo estava ouvindo uma fita tape deles. Mas quem é que ouve fita tape em 2009? Era 2008 na época, para falar a verdade. Talvez faça mais sentido agora. A questão é que ele estava ouvindo e eu resolvi ouvir. Ouvi, gostei, e hoje eu sou fã!
- Fã?! Quem são os Beatles para você, menino?!
- Esse é do tipo de pergunta para não se responde, né?
Fiz que sim com a cabeça.
- Bem, está bem tarde e amanhã eu gostaria muito de acordar cedo.Vou caminhar com um pessoal em uma trilha aí... Vai ser bem legal, eu espero.
Eu abri a porta e despedimo-nos.
Depois que fechei a porta, liguei o toca-discos e botei um bolachão para tocar. O que é que era? Beatles!
Deixei o humor para o final do texto, caro leitor. Quando abri a porta no começo dessa noite era ele. “Vamos sair?”.
- Vamos! Claro! Vamos ao banco?!
- Na verdade eu estava pensando em um programa mais... interessante. Vamos ao teatro? Ouvi dizer que a peça é ótima!
- Vamos.
Ele me esperava buscar a carteira cantarolando uma música que me lembrava Twist and Shout, mas ele não devia conhecer essa música.
As ruas estavam bem cheias. A praça da cidade nem se fala. Mal posso arriscar contar quantas pessoas estavam presentes naquele show de meia tigela. Nós havíamos acabado de deixar o teatro e resolvemos infiltramo-nos em meio à plateia assídua.
(...)
João Hernesto
Massa demais irmãozinho!
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