5 de setembro de 2011

Homem de 51 anos esconde a mãe morta por 2 anos

(para ler ouvindo http://www.youtube.com/watch?v=PfXJ72qZftA )


Tudo o que vejo é uma folha branca. Logo ela se tornará menos branca. Vejo os desenhos formando-se. Sinto a coceira saindo e libertando-se. Ela começa lá dentro e vai apegando-se a uma forma. Sinto engasgos e, não muito depois, náuseas formando palavras soltas. O que faço é tentar uní-las e formar sintaxes adequadas.

Sou apenas uma criança como qualquer outra. A diferença é que aprendi a ler com 4 anos e a escrever com 5 – o que fez com que minha mãe me amasse mais (e com que as pessoas me olhassem com espanto, mas nunca escárnio) – e, depois disso, eu nunca mais fui o mesmo: o mundo parecia-me pequeno para suas ideias, pequeno para emoções à flor da pele advindas do ser humano. Foi aí que errei, acostumei-me a ser o diferente da turma.

Um dia, acordei e senti que precisava ver além do me ofereciam. E aí eu fiquei cego. Cego no sentido metafórico. Não que eu tenha sido impedido de enxergar, mas eu fui impedido de ver. Minha mãe dizia que não era saudável ser como eu era, os olhares tornaram-se escárnios como que do dia para a noite. Lia poesia e também lia Marvel.

Minha mãe me levava a teatros infantis e eu analisava a estrutura de seus textos. Não tenho dinheiro para bancar tudo isso, você precisa arrumar um emprego, dizia mamãe. Escrever textos não daria dinheiro e não cessaria a falta de renda em nosso leito familiar. As pessoas pediam que terminasse meus estudos, mas não suportava mais a idiotice que as professoras me propunham. Escreva sobre suas férias! Escrevi que li alguns livros, que descobri que, cada vez mais as pessoas me davam asco. A professora sugeriu terapia. Aí eu desisti.

Parece que, quanto mais procuravam em mim o algo errado, mais encontrava nas pessoas esse algo errado. Diria mais que algo, para ser honesto. E, quanto mais eu lia, mais vontade tinha de encaixar padrões para o cérebro humano – que ilógico, hoje eu sei, será para sempre. Minha mente vivia o impasse de achar a perfeição para a mente humana e, acho que, se conseguir fazê-lo, as pessoas me agradeceriam. Se conseguir fazê-lo, conseguirei sobreviver lá fora de uma forma mais sóbria.

Ela acabou de dizer que estava doente, que precisava que eu trabalhasse para trazer remédios para sua cura. Não temos cura, mãe. Ela respondeu que quem não tinha cura era eu; desistir da escola, perder o pai, esconder-se atrás de livros cheios de palavras, criar mundos perfeitos, criar cérebros perfeitos, alimentar minha mente de quase 40 anos com coisas inúteis. Ela também disse que logo morreria e que se preocupava com o legado que eu deixaria para a família.

Isso me fez ter que trabalhar mais em minha teoria. Procurei padrões: se o homem diz que não aceita mais uma xícara de café, isso quer dizer que ele aceita ou que ele, de fato, recusa? Não consigo pensar sob pressão. Mas minha mãe precisa de um legado. Preciso salvar a humanidade, preciso produzir, preciso mostrar para as pessoas minha teoria, por isso, preciso terminá-la.

Destruir seu quarto não ajudaria a conseguir dinheiro. Nós precisamos de leite, você ainda tem o seu cofrinho? Tenho, pode pegar lá. Não, filho, eu não posso sair de casa, o médico disse que não posso. Mas eu tenho que construir meu legado! Comece com um bom emprego!

Aprendi a estacionar minha mente e conter as coceiras, para que as náuseas não surgissem enquanto cobrava os clientes da padaria. Aprendi a manter-me bem por fora, apesar de a guerra aqui dentro estar sendo épica. Quando chegava em casa, tentava me lembrar das ideias que tive durante meu expediente. Mas é como se tivesse adquirido um vício, o vicio se conter as ideias. E aí elas não passavam de coceiras, nunca mais surgiam. E o meu legado se destruía.

Foi numa manhã de abril que encontrei o corpo de minha mãe estirado em meio a seu próprio sangue. Uma arma em suas mãos. Preciso de um legado para nossa família. Corri para o quarto. A padaria ligou e perguntou se havia alguma razão pela qual não fui trabalhar. Respondi que precisava terminar meu legado. Passaram-se alguns meses, dizem eles, mas eu não consigo ver tudo isso. Li a manchete do dia: “Homem de 51 anos esconde a mãe morta por 2 anos”.

Deram-me como louco e internaram-me por representar uma ameaça social. Eu só pedi alguns meses mais para terminar meu legado e salvar o homem do mal que ele mesmo se causa. Bom que aqui o silêncio é grande, meu cérebro parece trabalhar melhor aqui. Briguei por algumas folhas de papel, mas elas se acabaram logo. Escrevi nas paredes do meu quarto. Quando não havia mais espaço, pedia que me mudassem de quarto. Quando acabava o espaço do novo quarto, pedia que me mudassem de novo; e mudavam ,por falar que eu havia quebrado tudo dos outros com meu próprio corpo.

Mandaram-me agora para meu primeiro quarto, onde tantas ideias surgiram. Quando soube, fiquei muito contente, pois eu seria capaz de rever meu projeto em etapas anteriores. Mas, ao chegar em meu antigo dormitório, as paredes estavam brancas e com cheiro de tinta fresca. A cama havia sido trocada, o vaso sanitário estava limpo e nem sequer uma fórmula havia sido salva.

Descobriram um primo distante logo depois que morri, mas ele não quis me enterrar nem chamar parente algum para lamentar minha falência. Deixaram-me em qualquer lugar, como se escondessem a vergonha que um indivíduo como eu representava para a sociedade. Meu primo levou somente algumas folhas rabiscadas coisas sem sentido em uma língua não conhecida, em caligrafias novas para o real. E levou consigo meu legado. Pensou em jogar fora, mas resolveu guardar, como que em memória a minha falecida mãe. Disse para os familiares que era um legado da família: o de engavetar ideias insanas da mente do esquisitão.

João Hernesto

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