Era um monstro que se debatia pelos porões escuros da cidade. As pessoas procuram resposta a tudo, procuram caminhos a percorrer. As pessoas procuram ser o mais feliz que se pode ser. O monstro era uma vez. Era uma vez um monstro. Infeliz. Separado. Eternamente angustiado.
Não tinha medo da morte. Não tinha apreço pela vida. Não tinha nada a perder. Partiu sem deixar bilhete, sem deixar mensagem, sem deixar legado. Não constituiu uma família e nem família nenhuma o constituiu. Veio do pântano, e para o pântano voltará.
Viveu de passado e futuro. Não viveu de presente. O suicídio coube bem à sua personalidade. Não conseguia ver o que tinha naquele momento, viu o que conquistou até então e sentiu-se satisfeito. Viu o que conquistará no futuro e não viu lá muita coisa. O presente era confuso, obscuro como seu coração.
Depois de perambular por aí procurando um lugar seguro para descansar a alma, resolveu descansar ele mesmo. Pensou que não poderia ficar por aí, que deveria existir algo além daquilo. Quer dizer, o céu ou o inferno. Qualquer calabouço que pudesse o abrigar a alma. Mas não o havia encontrado ainda.
Perdera seu olfato, paladar. Não perdera visão, tato nem audição. Talvez fosse por isso que aquela criatura acima de todos não o tivesse levado a seu fatídico fim. Quando tentou conversar com alguém, percebeu que não fora ouvido. Talvez por não mais existir naquela dimensão. Talvez por não possuir mais um código linguístico.
Nem sequer via fantasmas. Não conseguia achar seus companheiros de dimensão. Não tinha ninguém para explicar o que se passava. Procurou, procurou. Viajou pelo mundo todo em um espaço de tempo que nem sabia delimitar. Quando algo morre, esse algo vira nada. Esse algo vira somente uma figura suspensa, presente na vida dos vivos. À deriva, à revelia.
Olhou pela janela de um garoto. Criança normal. O garoto conversava com alguém mais velho, que parecia ser seu pai ou sua mãe – perdera também os sentidos de gênero. O mais velho o ensinava que o bicho-papão iria chegar a qualquer momento por ele ficar até mais tarde brincando de arte.
Entrou pela porta dos fundos e sentou-se no sofá, ao lado do pequeno menino. Eles se olhavam fixamente. O garoto fitava aquele monstro como se fosse algo estranho, sem saber o que era ou se deveria sentir medo. Ele conseguia ouvir os pensamentos do menino, que imaginava se aquilo se tratava do bicho-papão. Correu para seu quarto depois de longas trocas de olhares, como quem quer se conhecer e conceber. Como quem quer entender o outro.
O bicho-papão o seguiu. Deve ter corrido, já que o garoto também corria. Parou em frente à porta, que se fechou num grande barulho. Viu duas máscaras, uma alegre e outra triste. Viu uma clave de sol e outra que não conhecia. Leu: EDGAR. Entrou pela porta trancada, como quem tem uma grande força sob os objetos de Edgar.
Edgar estava embaixo dos cobertores, com a cabeça coberta, assim como o resto do corpo. Lutava para conseguir cobrir seus pés de criança. O bicho-papão o cobriu. Edgar gritou. Implorou misericórdia. O bicho-papão nada fez. Abrigou-se no armário de madeira e permaneceu lá, feliz por ter encontrado um novo lar.
“O bicho-papão existe na cabeça de quem tem medo de lobo mal.” (ninguém disse isso, mas perece interessante neste ponto do conto)
Capadócio
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