A prática erudita, cada vez mais pronunciada entre os homens contemporâneos, levanta questionamentos e problematizações de conceitos existentes na vida cotidiana. Um deles é o conceito de literário, até mesmo de literatura, que faz com que os estudiosos sintam-se cada vez mais no direito de intervir em situações passadas. Perguntado a um autor ainda vivo sobre um livro seu que serviu como tema de um famoso vestibular, o escritor apenas resumiu suas ideias enunciando: “Eu não saberia responder às perguntas”. A literatura pretende com seus estudos abrir um paralelo entre o ponto de vista do autor e a mensagem chegada ao receptor.
No caso da Carta que Pero Vaz de Caminha escreveu para a corte portuguesa, em que o relato da viagem e da descoberta de novas terras é feito, estudiosos literários buscam resolver esta questão: seria a carta um documento histórico de cunho burocrático ou a primeira obra literária brasileira de que se tem história?
O documento foi escrito por Caminha, tesoureiro e escrivão da Casa da Moeda de Portugal. Sabe-se que não se tratava de um homem que buscava escrever para manter afazeres para o rei, também para satisfazer seus sentimentos humanistas, de homem que busca o contato com as raças, a história das raças, a cultura das raças.
Profissionalismo à parte, pode-se dizer que o foco dado por Caminha na carta foi perspicaz e interessado na cultura dos povos. Caminha soube transmitir a emoção que sentia nos momentos vividos, não como colonizador, mas como humanista e poeta.
Digo poeta pelo uso de expressões eufêmicas – como em “mostrar suas vergonhas” – ou metáforas – como em “naquilo me parece ainda mais que são como aves”. Ora, um documento prioritariamente burocrático não exerce papel poético.
Em contrapartida, não se pode dizer da carta como um primeiro registro da literatura brasileira, simplesmente por tratar do Brasil ou por ter sido escrita no Brasil. Considero ingênuo esse ponto de vista. Ingênuo porque a literatura brasileira nasce onde nasce a identidade brasileira. Um filme brasileiro, por exemplo, difere-se do filme “hollywoodiano” não por tratar do Brasil, mas por representar ideologias e culturas da sociedade habitadas nesse país.
O debate acerca da carta, seja ela documento burocrático ou documento literário – brasileiro ou português –, mostra-se errôneo dos dois lados. Faz-se necessário, assim, enfrentá-la como documento histórico, não importando ser literatura ou não. Como dito, o brasileiro vai sentir emoções mil ao lê-la, mas as emoções pela carta despertadas tem mais sentido pelo fato de se tratar da história do país. O sentimento de emoção é mais contido nesse contexto por tratar-se de um documento histórico.
Contudo, um curso de Literatura Brasileira deve iniciar seus estudos na carta de Caminha pelo fato de ser a gênese do pensamento brasileiro e reacionar uma série ideias tidas como brasileiras, de pessoas com cultura tipicamente brasileiras. Trata-se de uma discussão literária pouco relevante, mas muito desperta o interesse na identidade brasileira na época dos diários de viagem quinhentistas.
Leandro Augusto.
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