10 de janeiro de 2012

Seis

Passei a manhã toda pensando naquilo como se tivesse sido ontem. Mas foi anteontem. Ou teria sido antes ainda? Creio que perdi a noção do tempo e que os meus dias que sucederam a isso me fizeram ter nada mais que um desligamento do real e o inventário tomou conta de mim. Você, caro leitor, deve pensar que seu protagonista tenha ficado louco, mas não ficou. Ele só tem culpa e ódio de si mesmo por não saber nem por onde iniciar sua história. Bem, tentarei agora.
Eu tinha acabado de tomar banho. Antes ainda, tinha encontrado um disco do Gardel que estava desaparecido. Coloquei para tocar e tomar banho. Quando saí do banho, o lado A já havia sido tocado, o que me fez pensar que o banho teria sido muito longo. De qualquer forma, troquei o lado do disco e me dei por satisfeito pelo relaxante banho que acabara de tomar. Fui arrumar-me com calma, pensei que não tinha porque correr se quem me esperava poderia esperar mais alguns minutos.
Enquanto me arrumava, percebi como o disco dos Beatles que estava pensando em ouvir depois tinha dois lados distintos: o primeiro deles era de um estilo mais roque, tinha uma quedinha para o início da carreira do grupo; o segundo lado começava com sítaras e batidas em tambores psicodélicos, dignos de um psicodélico de plantão. Imaginava o que se passou na cabeça deles e ri com meu pensamento tolo. Escolhi minha gravata favorita e desejei ser apropriada, apesar de sempre achá-la apropriada.
Enquanto saía de casa e trancava a porta, o vento batia para o leste e o sol brilhava para o oeste, mas isso não me chamou tanto a atenção quanto as seis linhas de cada parágrafo deste meu novo texto. Pensei se havia um propósito e disse para mim mesmo: “há tanto propósito em escrever um texto que contenha parágrafos de seis linhas quanto usar minha gravata favorita num dia especial e nos dias normais e persistir em achar que ela é especial”. E foi aí que percebi que ultrapassara uma linha das minhas seis.
Mas depois notei que não havia linha alguma ultrapassada. Ri sozinho na rua, enquanto pessoas passavam para trabalhar e crianças – que são pessoas igualmente, apesar de minha estranha construção – iam para a escola com seus pais – que se admitem como pessoas, ainda. A vizinhança de minha casa era bastante tranquila, mas somente enquanto ainda estava na minha rua. A partir do momento em que se ultrapassava a linha da próxima esquina, perdia-se a paz e o sossego. Mas eu não ultrapassei as seis aqui.
Havia comerciantes na rua e eles queriam vender alguma nova bugiganga para mim. Mas eu não queria bugiganga, queria apressar-me para pegar o próximo trem para o Braz. No trem, não há nada para contar que seja pertinente aqui colocar. Na verdade, há tanta importância em contar o que aconteceu no trem quanto usar minha gravata de todo dia numa data especial. Era uma segunda colorida e o vento se misturava às gotículas de chuva, já que no caminho de trem começara a chover e eu nem percebera.
Ainda sobre o vento, a luz, a chuva, o arco-íris que eu desejei ver, notei que o mundo estava se esvaziando por causa da chuva. Notei um carro de polícia e notei também que o trem estava mais lotado que o normal. Aquele mesmo trem que pego desde criança e que peguei ainda agora estava lotado de policiais e pessoas curiosas. Ele estava parado. Eu também estava parado. Só que, dessa vez eu estava no galpão da ferrovia e era feliz com minha xícara de café.
Seria este mais um conto fantástico? Creio que não. Ou será que sim? Afinal de contas, que problema há em contos fantásticos? O coração do homem é fantástico. A mente humana é fantástica e nos pega mentindo para a realidade. A gravata era fantástica com aquelas novas cores de tom avermelhado que adquiriu. A viagem de trem mais longa era fantástica por ser longa e ter-me mudado para sempre. Fantásticos eram os olhos dos psicopatas que olhavam suas vítimas. Fantástico era o olhar daquela gente para o corpo estirado no vagão. Mas acredito que esse último parágrafo já ficou maior do que o esperado. Bem, continuarei o processo como quem quer aumentar as linhas e fazer um número que seja múltiplo de seis. Tolo meu pensamento, mas a ideia aqui é permanecer nesse padrão, que eu acabo de quebrar. Nesse caso, um novo padrão é posto e o tradicional é questionado. Isso acontece a todo momento, sabe. Na realidade, isso me aconteceu no trem. O padrão de viver. O padrão de ter o livre arbítrio dos vivos. Mas agora estou morto e meu assassino acaba de sair como quem nada fez. Os policiais nada fizeram. Eles não fizeram nada. Só chamaram a ambulância e recolheram meu corpo. Mas eu não queria mais um corpo, agora tinha meu espírito e minha gravata vermelha de sangue. Na verdade, há tanta importância em contar o que aconteceu no trem quanto usar minha gravata de todo dia numa data especial. Só mais uma linha e um cigarro e posso desviar-me para o que aconteceu depois disso.
Bem, quando terminei meu cigarro de fantasma, percebi que deveria escrever o que me havia acontecido. E foi aí e só aí que percebi que ainda estava atrasado para meu encontro. Como não sabia o que os deuses pensavam sobre tempo e o que os fantasmas percebiam como tempo, pensei em pentear meu cabelo, limpar a mancha de sangue em meu braço e seguir meu caminho de volta para casa. Embarquei no próximo trem ao centro e me sentei no próximo assento vago.
Cheguei em casa, liguei a vitrola e ouvi o segundo lado do Sargent Peppers. Disfrutei da sítara e dos tambores. Percebi que os céus se esqueceram de me avisar da sentença, mas permaneci esperando que ela chegasse, porque tinha de chegar, sabe. Sentei-me no chão como não fazia há tempos e desejei tomar um whiskey. Coloquei muito gelo no copo e tomei whiskey com a água que derretia do gelo. Percebi que o número seis estampado naquele trem me fez escrever. E me deu mais um personagem.
Sargent Peppers.

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