28 de outubro de 2011

Marília de Dirceu

Ouvi falarem de você, mas recusei-me a entender o significado daquelas palavras. Recebi uma ligação ontem, mas recusei-me a interpretar as palavras que você dizia. Simplesmente respondi a primeira frase que meu cérebro formulava como um mantra, que sai de nossas mentes sem que percebamos o que exatamente as palavras em si contidas querem dizer.

Disseram-me, você parece feliz. Tenho meus momentos de felicidade instantânea. Nasce, cresce e somente. É como se algo dentro de mim impedisse que se instaure por completo. Esquecer de você, nesse momento, parece-me óbvio e fácil. Depois de algum tempo, lembrar de você parece mais instantâneo e a tristeza me bate de forma nada lúcida. Ou será que é lúcido lembrar-me?

Pessoas falam que Marília de Dirceu amou Tomás Antônio Gonzaga até o dia de sua morte. Pessoas sabem que aquele personagem não fora criado, fora conhecido. Parece óbvio que aquele amor de Tomás perdurou até a eternidade não só de si mesmo como também da literatura brasileira. Ele pôde eternizá-la e fazê-la conhecida por pessoas que viveram 200 anos depois nas mesmas terras em que se apaixonaram.

De alguma forma poderosa, quanto mais procuro esquecer, mais nítidas são minhas dolorosas lembranças. Nosso futuro é termos nossos túmulos lado à lado, postos num museu com algumas palavras apaixonadas, sejam doídas, sejam prazerosas.

Leandro Augusto.

26 de outubro de 2011

Maniqueísmo

Eu costumo acreditar na luz que as pessoas carregam consigo. Acredito mesmo. Em algumas poucas pessoas que por minha vida passaram consegui vê-la. Cada uma tem uma cor diferente. Cada uma tem uma intensidade diferente e não depende do humor para que seja pontual a gradatividade com que se impõe. Diferentemente do semblante, a luz das pessoas é perceptível de acordo comigo mesmo e com o que sinto por elas.

Sim, a ideia acima pode parecer um tanto relativa, já que a beleza está nos olhos do poeta. Mas eu chamo isso de cativar. Como a raposa e o principezinho, alguém nos cativa a partir do momento em que passamos nosso tempo com essa pessoa. Alguém nos cativa quando percebemos que gastar o tempo com a pessoa se faz não somente atraente como também necessário. Alguns chamam isso de amor, outros de obsessão. Chamo isso de luz.

Não, isso não prova o fato de ver a luz e enxergá-la de fato, relatividade à parte. Comprovarei o que provei: algumas pessoas passam por nossas vidas de forma extremamente passageira, como quem passa pela rua. Só que, enquanto passamos pela rua, algumas pessoas se sobressaem, seja pela roupa que usa, seja pelo perfume que põe, seja pela fisionomia que lembra, seja pela beleza que expõe. Como quem passa pela rua e repara em uma pessoa, as pessoas em quem vejo a luz se mostram logo de cara.

Sim, algumas vezes as demoro a delimitá-la. É como se visse um vulto iluminado, mas não há linhas de separação entre o concreto e o celestial. Ainda assim, algumas pessoas me olham e eu consigo enxergar a luz, uma luz boa, uma luz que representa algo como uma salvação em meio ao desesperador escuro. Não sei explicar se essa luz sai do coração, da mente, da história que a pessoa construiu, mas a luz aparece. Está lá e não posso negar sua existência.

Não, eu não estou enlouquecendo. Comprovarei o que provei: uma pessoa me mostrava uma luz muito reluzente. Um reluzente que, agora, não saberia explicar se bom ou ruim. Talvez o problema seja esse maniqueísmo em que nós, seres humanos, somos postos. Acontece que essa luz era tão forte que me cegava. Ainda me cega. E eu me deito para dormir, eu sonho, eu respiro, eu aspiro a encontrar de novo essa luz em um momento que não seja puramente insano. Num momento sóbrio.

Sim, eu perdi essa luz. E busquei encontrá-la. Busquei em outras pessoas, busquei na mesma pessoa. Chorei e pedi. Pedi e sofri. Esperei por seu retorno, mas ela não voltou. E foi aí que meu humor começou a alterar a forma como as luzes se mostravam para mim. As luzes alheias não mais me interessavam, parecia-me meramente humano, eu queria o divino. Bem, nesse ponto eu acreditei ser o mais infeliz dentre os homens.

Não, eu não era o mais infeliz dentre os homens. Talvez eu tenha me esquecido que o sofrimento e o amor são contidos no mundo físico, no concreto, no que se toca. Na realidade, eu precisava ver que as luzes que eu procurava não estavam aqui, estavam além. Muito além. E foi aí que uma outra luz apareceu. Aí eu pude constatar que eu havia mesmo me esquecido da luz mais importante que poderia existir: a minha própria luz.

Sim, continuarei a relatar minha comprovação. Pois é neste ponto que encontro uma nova luz. Uma luz que já me havia aparecido. Uma luz que já havia por mim sido vista, talvez não notada. E foi quando pude enxergá-la pelo que ela é, e foi aí e só aí que me pude permitir repará-la. E a luz vem tomando conta de mim nos últimos dias e eu nem percebo. Sei que ela está aqui agora, sei que ela vai continuar aqui.

Não, essa nova luz não é como a outra. Ela não me cega, ela não me impede de ver o mundo e as luzes à minha volta. Na verdade, ela me permite olhar para minha própria luz e vê-la como um holofote que reluz ao longe, que reflete o brilho dos céus. E essa luz, essa luz me cativa sem que eu nem ao menos perceba. Falando em cativar, a raposa diz que foi o tempo gasto com a rosa que fez com que o principezinho tenha sido cativado por ela.

Sim e não. Foi o tempo gasto com a rosa que me fez ser cativado pela luz cegante, que persiste em habitar minha mente, meu corpo, meu coração. Ainda a vejo, ainda a sinto, ainda a posso tocar. Só que agora me parece tão confortável ter a raposa ao meu lado. Porque a raposa pede para ser cativada, e eu, o principezinho, quero cativá-la. E quero cativá-la por uma razão convincente: eu já fui cativado por ela.

O amor é uma doença, precisamos nos curar dela e nos preparar para a próxima pois nunca estaremos totalmente imunes a ela. A luz é o que move o amor. A luz é o que nos faz curar do amor e nos infectar novamente. O amor vai e vira lembranças, a paixão vai e vira cinzas. A luz permanece. A luz prevalece. As duas luzes prevalecerão. Só que agora eu quero ser infectado por essa nova luz.

João Hernesto.

19 de outubro de 2011

A Rua

Todos os dias que passava por lá, via a rua bastante cheia. Costumava passar por ali antes de chegar à casa de sua família. Talvez por isso mesmo não sentisse necessidade de parar em um de seus cafés e pensar na vida. Na maior parte das vezes, tinha pressa ou estava contente demais para reparar naquela rua que nada de mal a fazia.

Um dia, estava bastante triste. Sentiu saudade de casa, saudade de sua mãe e de um cafuné durante a manhã de domingo. Saudade de assistir a desenhos animados em dias de falta de aula. Foi para a casa de sua família. Tudo parecia bastante vazio, as ruas eram frias e escuras. Algo a fez pensar que seria seu humor que fazia esses sentimentos transparecerem. A rua estava cheia, o único lugar da cidade cheio. Estranhou, mas seguiu. Chegou ao seu destino e recebeu um abraço carinhoso. Passou o feriado lá.

Num outro dia, estava feliz, muito feliz. Havia recebido a notícia de que conseguira a liberação para fazer um intercâmbio. A primeira coisa que quis fazer foi correr a casa de sua mãe para receber um daqueles abraços fortes. Passou pela rua, que fazia esquina com a casa onde nasceu e foi criada, e – obviamente – estava lotada de pessoas estranhas.

Ela lembrava-se de que a rua sempre esteve cheia. As pessoas sempre foram estranhas e tomavam seus cafés e fumavam seus cigarros. Percebia, ainda criança, que alguns choravam, outros riam. Percebia que alguns iam acompanhados, outros iam sozinhos. Mas percebia mesmo que as pessoas eram estranhas, puramente estranhas. Estranhas por não conhecer, estranhas por não compreender.

Ficou alguns anos sem visitar a rua por estar longe demais. Começou a montar uma vida fora de seu país e se esquecia lentamente de seu passado, da saudade que sentia de sua mãe, da rua cheia de gente estranha. Começou a viver e não pensar. Começou a viver do futuro.

É claro que ela teve de voltar. Quando voltou, disseram que sua mãe havia tido um problema na saúde e não agüentou o tratamento. A primeira coisa de que sentiu vontade foi ir para casa e ter um abraço de sua mãe. Só que ela não estava lá. Passou pelo caminho que fazia todos os dias quando voltava da escola. Passou pela rua. Naquele dia a rua estava vazia. Ela pensou que nunca aconteceria, mas aconteceu.

Sentou-se no primeiro café daquela rua e pediu um expresso. Não gosta de café. Na verdade, odeia café. Mesmo assim, pediu. Olhou a casa onde cresceu, a casa onde sua mãe faleceu. Viu sua vida inteira naquela rua. Desejou ter feito parte dela mais ativamente, desejou não tê-la achado estranha. Tomou o café e partiu para casa. Naquela noite, não dormiu e botou a culpa no café.

Nos dias que se passaram, sentiu necessidade de ir à rua, ver as pessoas estranhas de perto. Não foi em nenhum desses dias. Pensou que não a faria bem estar lá. Então, só desejou. Às vezes chorava, às vezes sorria. Às vezes pensava que a vida continuaria normalmente, mas sabia que não.

Passado um mês que havia chegado do país, já conseguira um bom emprego perto do bairro onde morava. Isso a fazia ir ao trabalho a pé, para se exercitar no corpo e na mente. Sentiu necessidade de estar na rua, de olhar para as pessoas estranhas, de ser mais uma naquela profusão de mentes. Assim pensando, pegou os dois ônibus que a levavam a seu destino.

Encontrou a rua. Uma felicidade súbita a invadiu. Os cafés estavam vazios. Estranhou, mas resolveu ficar. Tomou um, dois, três, muitos cafés. Pensou que não dormiria naquela noite. Reparou que as pessoas chegavam aos poucos. Aos poucos também, saíam e rodiziavam com as próximas a chegar. Observou e prestou atenção nas conversas. Falavam sobre trabalho, relacionamento, dificuldade de locomoção, reforma política, mães. Permaneceu sentada o dia todo. Tomou outros cafés e observou. Sentiu-se em casa. Não saiu mais de lá.

Capadócio.

17 de outubro de 2011

Café das Cinco

Que bom que veio! Fico feliz que tenha aceitado meu convite. Fiquei sabendo que conseguiu um emprego com ótimo salário. Isso é maravilhoso! Fico realmente bastante contente por você. Quer dizer, talvez eu não me sentiria há alguns anos, mas a ferida tem cicatrizado aos poucos. De vez em quando ela começa a sangrar, mas já encontrei alguns remédios para superar sua falta, sabe. Chamo-os de muletas, pois me sustentam em pé por alguns dias a mais. Mas, não, não no começo. No começo eu queria te ter de qualquer forma. Eu não parava de te procurar, mas não queria chamar sua atenção. Não queria que sentisse pena de mim ou que me aceitasse de volta. Não, não era isso! Na verdade eu só sentia uma necessidade imensa e incontrolável de te ver, nada mais. De pelo menos conversar com você, nem que fosse para que me rejeitasse, se eu tivesse sua voz direcionada a mim – um pouco que fosse – eu já me sentia bem.

Aceita um chá ou um café? Só que parei de tomar café com açúcar, tudo bem para você? Não sei por que, só parei.

Bem, você deve estar sabendo que estou indo embora, certo? Eu acho que durei tempo demais nessa cidade. Quer dizer, eu suportei te ver mais feliz sem mim, eu te vi construir sua vida de novo, como se um vendaval não o tivesse abatido. Eu te vi com outras pessoas, e acho que te vi feliz. Eu te encontrava pela rua e me limitava a dizer olá de longe. Eu tentei te esquecer, tentei não te procurar e consegui. Tentei viver minha vida e seguir em frente. Posso dizer que consegui, talvez por não ter tido escolha. Bem, eu me reergui durante o dia. Durante a noite, lembrava-me de você. Durante o dia seguinte, construía mais uma camada de tijolos e durante a noite seguinte, chorava mais um pouco a sua falta. Mas aprendi a viver assim, aprendi a viver no sufoco. Aprendi a chegar em casa e olhar para os meus móveis e te ver em todos eles. Aprendi a olhar-me no espelho e te ver atrás de mim me beijando o pescoço. Aprendi a deitar-me na cama e sentir o espaço que você ocupava e só sentir. Abraçar mil travesseiros e dormir em paz sabendo que você estaria lá. Dormir e desejar-te todo o mal, mas depois desejar-te todo o bem. Dormir e sonhar com você. Às vezes acordava com falta de ar, às vezes acordava sorridente.

O café está bom?

Bem, imagino que já tenham se passado 3 anos. Pensei que até agora já estaria mais feliz. Acho que a cidade não me faz bem. Acho que ver as pessoas e imaginá-las comentando que terminamos há muito e eu permanecendo a chorar, isso não me fez bem. Por isso decidi que vou embora. Vou deixar o caminho das ruas livres para você passear com seu novo ar de homem livre. Ouvirei músicas sobre amor à distância e não poderei me sentir parte delas. Conhecerei outros homens e me arrependerei de tê-los conhecido para tentar te apagar da minha mente. Mas acredito que estarei bem. Eu estou bem. Às vezes tento transparecer excelente, mas acho que não engano. Eu não te engano. Você sabe o que se passa aqui dentro. Você sabe que eu sigo com você aqui comigo. Você sabe, não sabe?

Só me resta agora tentar completar meus diálogos monologados com falas suas. Talvez um dia consiga saber o que se passa em sua cabeça, ou melhor, o que se passou, visto que é passado para você. Seguirei sabendo que me falta algo. Mas seguirei.

Adélia

13 de outubro de 2011

A Selva do Amor

Quando se conheceram, nasceu em si aquele sentimento gostoso. Brotou como o broto. Foi se enraizando sem que ele percebesse. Amá-la foi fácil, foi natural. Não chegou de supetão, como dizem por aí. Chegou com calma e se instaurou. Ele não pôde controlar, é claro. Mas também não desejou ter controle sob aquilo.

Só que depois se tornou doença. Na verdade se tornou várias doenças misturadas. O ciúme chegou. Ele chegou de supetão, sem avisos nem pegadas. Chegou a obsessão, o que fez dele um caçador perdido na selva. Ele sabia e sempre soube disso. Ele quis que isso acontecesse.

Quando terminou, ele já estava tão perdido e livre era o caminho para virar caça que não encontrou respostas. Viu os bichos passarem. Bichos dos mais selvagens, mas selvagem era o seu coração. A selva era o seu coração. E deitou-se no mato e esperou ser comido. Torceu que passasse logo o tempo. Torceu para que sua digestão no estômago daquele tigre fosse rápida. Mas não foi.

João Hernesto

7 de outubro de 2011

Dor

A vontade é de ficar. O dever chama, não é assim que dizem? Pois ele chamou. Na verdade, ele vem chamando há um tempo. Na verdade eu venho me recusado a vê-lo. A vontade de partir por um tempo veio de mim mesmo. A vontade de tentar esquecer de verdade. A vontade de colocar como passado todas as coisas que aconteceram.

Compro as coisas que precisarei para a viagem. Faço mapas em minha cabeça, mas nenhum planejamento. Separo minha mala. Começo a separar as roupas. Preciso arrumar meu quarto. Pego a louça suja esquecida. Vejo uma garrafa de cerveja que tomei quando conversamos pela última vez. Vejo a garrafa de vinho que tomei logo depois da notícia.

Mas a dor de verdade veio quando fui arrumar a cama. Sozinho, não vejo motivo para arrumá-la. Sempre arrumava-a quando sabia que viria. Arrumava meu quarto todo. Essa é a primeira vez depois de tudo que arrumo meu quarto sem que fosse para a presença que esperava a semana toda. Tiro meus travesseiros que vêm fazendo sua vez nos dias e nas noites, longas noites. Tiro meu cobertor e não encontro mais forças. Como se um grito calado e colhido saísse sem controle algum de dentro, bem de dentro. Sai e corre. Percorre minhas pregas vocais. As lágrimas caindo e eu nem percebo. A dor chegando sem ser convidada.

A vontade de desistir de esquecer. A vontade de implorar mais um pouco. A vontade de sentir o abraço de novo e de novo. A vontade de não perder isso. A vontade de me deitar e dormir e esperar que chegue de novo o conforto. Ele vai chegar, a vida não pode ser tão má comigo, não pode. A repetição presente em mim. A repetição presente em nós dois. A repetição tem que vir. Que venha logo, porque está difícil continuar a caminhada.

João Hernesto.

6 de outubro de 2011

O Altruísmo Literário acerca da Carta de Caminha

A prática erudita, cada vez mais pronunciada entre os homens contemporâneos, levanta questionamentos e problematizações de conceitos existentes na vida cotidiana. Um deles é o conceito de literário, até mesmo de literatura, que faz com que os estudiosos sintam-se cada vez mais no direito de intervir em situações passadas. Perguntado a um autor ainda vivo sobre um livro seu que serviu como tema de um famoso vestibular, o escritor apenas resumiu suas ideias enunciando: “Eu não saberia responder às perguntas”. A literatura pretende com seus estudos abrir um paralelo entre o ponto de vista do autor e a mensagem chegada ao receptor.

No caso da Carta que Pero Vaz de Caminha escreveu para a corte portuguesa, em que o relato da viagem e da descoberta de novas terras é feito, estudiosos literários buscam resolver esta questão: seria a carta um documento histórico de cunho burocrático ou a primeira obra literária brasileira de que se tem história?

O documento foi escrito por Caminha, tesoureiro e escrivão da Casa da Moeda de Portugal. Sabe-se que não se tratava de um homem que buscava escrever para manter afazeres para o rei, também para satisfazer seus sentimentos humanistas, de homem que busca o contato com as raças, a história das raças, a cultura das raças.

Profissionalismo à parte, pode-se dizer que o foco dado por Caminha na carta foi perspicaz e interessado na cultura dos povos. Caminha soube transmitir a emoção que sentia nos momentos vividos, não como colonizador, mas como humanista e poeta.

Digo poeta pelo uso de expressões eufêmicas – como em “mostrar suas vergonhas” – ou metáforas – como em “naquilo me parece ainda mais que são como aves”. Ora, um documento prioritariamente burocrático não exerce papel poético.

Em contrapartida, não se pode dizer da carta como um primeiro registro da literatura brasileira, simplesmente por tratar do Brasil ou por ter sido escrita no Brasil. Considero ingênuo esse ponto de vista. Ingênuo porque a literatura brasileira nasce onde nasce a identidade brasileira. Um filme brasileiro, por exemplo, difere-se do filme “hollywoodiano” não por tratar do Brasil, mas por representar ideologias e culturas da sociedade habitadas nesse país.

O debate acerca da carta, seja ela documento burocrático ou documento literário – brasileiro ou português –, mostra-se errôneo dos dois lados. Faz-se necessário, assim, enfrentá-la como documento histórico, não importando ser literatura ou não. Como dito, o brasileiro vai sentir emoções mil ao lê-la, mas as emoções pela carta despertadas tem mais sentido pelo fato de se tratar da história do país. O sentimento de emoção é mais contido nesse contexto por tratar-se de um documento histórico.

Contudo, um curso de Literatura Brasileira deve iniciar seus estudos na carta de Caminha pelo fato de ser a gênese do pensamento brasileiro e reacionar uma série ideias tidas como brasileiras, de pessoas com cultura tipicamente brasileiras. Trata-se de uma discussão literária pouco relevante, mas muito desperta o interesse na identidade brasileira na época dos diários de viagem quinhentistas.

Leandro Augusto.

5 de outubro de 2011

Temporada de Maré Alta

Começou bem devagarzinho. Ele viu que os problemas estavam quase ali. Chegaram não de supetão, deram alguns sinais de existência. Ignorou, pensou que tinha outras preocupações. Nada fez. Só persistiu a chorar a falta.

Só que cresceram e tomaram grandes proporções. Não teve outra ideia senão desabar. Deixar que os demônios tomassem conta de seu corpo, ainda que por um pequeno instante. Chorou e se sentiu fraco. Sentiu-se totalmente fraco.

Tentou ligar e chorar, mas não foi atendido. Em meio a tantos problemas, em meio ao caos, tudo o que queria era conversar como antes. Não tinha pretensões de voltar o relacionamento ou algo do tipo. Só queria chorar e contar as últimas coisas acontecidas em sua vida. Não foi atendido. Quando ele achou que pudesse contar com um amigo, somente, enganou-se. O amigo não quer preocupações com ele. Quer preocupar-se de si mesmo e nada mais.

E foi assim que as coisas acabaram. Foi assim que a vida começou a ficar perigosa. Foi assim que perdeu sua proteção, seu porto seguro no meio da maré alta. Foi assim que chorou e desejou. Só desejou.

Adélia

3 de outubro de 2011

Elegia

“Eis o segredo que ninguém sabe

Eis a raiz da raíz e o botão do botão

E o céu do céu do uma árvore chamada vida

Que cresce mais do que a alma pode esperar ou a mente pode esconder

Eis o milagre que mantém as estrelas à distância.” (Cummings)

Tinha dois anos quando aconteceu, propriamente. Tinha dois anos de idade. Dois anos de espera angustiante. Dois anos de espera. Dois anos. Até que chegou o dia marcado para acontecer. Acordou de uma soneca. Acordou e sorriu. Deu aquele sorriso largo. O dia foi 25 de maio, em 1992. Sorriu e pensou, agora posso ser feliz. Minha alegria acaba de nascer.

Cresceu pelo mundo, pulando obstáculos e costurando os rasgos que faziam na roupa. Viveu perambulando, como quem espera mais um pouco. Vai chegar o dia. Ele sabia que o dia chegaria. Saiu de casa, deixou a família. Buscou o sonho, precisava se movimentar. O momento de nos conhecermos vai chegar, eu sei que vai.

Quando marcaram um encontro, pareceu-lhe mais uma tentativa frustrada. Parecia que seu coração mais uma vez sofreria por não ter, de fato, encontrado a alegria por que tanto vem esperando. Conversaram sobre a vida. Falaram o que tinham vivido. De alguma forma, parecia-lhe que já se conheciam. Parecia-lhe que aquele monte de histórias era só um jeito de contar para um amigo que há muito não vê tudo o que tem acontecido. Houve reconhecimento.

Eles foram pra casa. Conversaram. Beijaram-se. Beijaram-se e ele desejou que aquele momento nunca mais fugisse. Aquele momento nunca mais fugiu. Continua vivo, continuou vivo por 16 meses. 16 meses perto de 20 anos de espera constante. Ele se sentiu em casa, sentiu-se confortável. Não precisava falar uma palavra que seja. Não precisava falar que amava. Só amava.

Os dois, eles foram para o outro o marco dos marcos. Eles representaram um para o outro o reconhecimento. Eles tiveram seus momentos, mas não comparados à alegria de ter, finalmente, o outro para ligar a noite e contar o dia. Esperar o fim de semana, contar os minutos para se encontrarem. Contar os segundos para se verem de novo. Porque era como se, quando estavam juntos, o mundo parava. Quando tocavam a pele um do outro, a vida esperava para continuar a rodar. O universo parava.

As coisas boas de verdade acontecem por pouco tempo. Nossa espera chega como quem chega de supetão. Depois, some sem nem sabermos ao certo o que aconteceu. Deixa-nos duvidosos da vida, se ela é vilã ou mocinha. Faz-nos ficar descrentes de deus. Faz-nos ter esperança, mesmo assim.

A luz que ele viu nos olhos, o momento em que o viu totalmente por dentro. Aquele momento, ele vai levar. Não há como negar. E ele vai permanecer esperando. 16 meses foram o suficiente para que o reconhecesse. 16 meses de alegria incomensurável. 16 meses de uma vida toda que levará até que se encontrem de novo. Até que suas almas se unam de novo e promovam o encaixe perfeito de novo. Afinal, ele esperou tanto tempo, pode continuar esperando a próxima vida, o próximo encontro. Ele esperará. Voltar à estaca inicial, ao ponto zero. Só que, dessa vez, alegre por saber que não será uma espera por um objeto desconhecido.

Até logo, disse.

Leandro Augusto.

“Eis o segredo que ninguém sabe

Eis a raiz da raíz e o botão do botão

E o céu do céu do uma árvore chamada vida

Que cresce mais do que a alma pode esperar ou a mente pode esconder

Eis o milagre que mantém as estrelas à distância.” (Cummings)

2 de outubro de 2011

O Suco de Laranja

Dormiu tarde, mas mesmo assim colocou para despertar o relógio. 7:30 é um bom horário. Acordou ainda bastante sonolento. Tomou um banho para tirar o suor de ontem e para acordar. No banho, pensou, se preparou, preparou a alma para tirar um sorriso da cara do outro. Pegou uma toalha para se secar, um protetor solar para se proteger, uma troca para vestir. Esqueceu o chinelo. Saiu de casa contente.

Parou antes na padaria e comeu como um boi, talvez para compensar o dia de ontem, que sobrevivera com dois pães franceses e uma sopa individual. Pediu um suco de laranja para levar, porque aqui eles não falam para viagem. Na verdade, eles também não falam pão francês, e sim pão de sal. Pediu que colocassem o suco de laranja na garrafa e imaginou que ele tomaria e ficaria empolgado com o convite.

Comprou um bolo de laranja com chocolate, que parecia apetitoso. Comprou pães, presunto, queijo e maionese, que pareciam triviais. Comprou água e suco, que pareciam essenciais. Pensou em comprar frutas, pois estavam os dois doentes. Não comprou, não queria se atrasar para a surpresa.

Subiu a ladeira e sentiu um calor insuportável. Ligou para ele e não conseguiu falar. Ligou mais uma vez e ele ainda não atendia. Subiu mais um pouco. Suava muito por conta da febre que tivera pela noite e do sol, que parecia ser ótimo para um dia daqueles.

Chegou à casa que visava. Chamou mais uma vez ao telefone. Ele atendeu. Disse que já sairia, que acabara de sair do banho. Ele esperou dez minutos. Sua irmã apareceu. Oi, disse. É, estou esperando que saia do banho, já avisei que estou aqui fora. Ela saiu arrumada. Mais dez minutos e ele apareceu.

- Oi, disse.

- O que você quer?, ele não se sentou, fitou-o como quem fita um cachorro pedir comida, mas nada faz.

- Trouxe bolo, pães, suco de maracujá, água, protetor solar e um suco de laranja para melhorar. Vamos à cachoeira?

- Tenho o batizado da minha sobrinha. Não posso ir.

- Mas podemos ir depois que você sair de lá.

- Não, depois tem almoço em família.

- Podemos ir depois disso.

- Não vou sair com você, Leandro.

Seus pais apareceram e o cumprimentaram. Chamaram-no para entrar. Ele recusou. Pediu mais um pouco, como quem quase implora. Seus pais continuavam lá, como quem arruma o carro para sair. Ele pedia baixinho, enquanto o outro repetia seu nome seguido de não, como quem quase grita.

Ele respirou fundo. Quase chorou. Sentiu-se um pouco humilhado, como quem recebe um não na frente dos pais daquele que costumava ser seu namorado. O outro entrou. Ele se levantou, como quem desiste. O pai perguntou se ele não vai ao batizado. Ele respondeu que está tentando convencê-lo a ir à cachoeira. A voz saiu um pouco trêmula, mas conteve-se. Voltou a subir e foi pra casa pensar no que mais tentaria.

João Hernesto.